
Numa tentativa de facilitar a tarefa a quem tivesse de a cumprir, Rita Lee já tinha, em 2016, escrito o epitáfio que, no dia da sua morte, poderia ser lido para resumir a sua vida: "Não foi um bom exemplo, mas era gente boa". A cantora, que morreu no início desta semana, aos 75 anos, já tinha também antevisto o dia do seu velório. Imaginava fãs a cantar o tema 'Ovelha Negra', "palavras de carinho de quem me odiava", e o seu nome atribuído a uma rua… "sem saída" claro. "Nas redes sociais alguns dirão: 'Ué! pensei que a velha já tinha morrido. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los", escreveu na sua autobiografia em 2016.
O velório, aberto ao público, decorreu na quarta-feira no Planetário do Parque Ibirapuera. Durante a cerimónia, foi projetada, no teto, a data de 31 de Dezembro de 1947, dia em que a cantora nasceu. Conforme era seu desejo, o corpo foi depois cremado num momento reservado a familiares e amigos. Rita tinha também deixado o pedido expresso para que não fossem acendidas velas nem que lhe deixassem flores.
"Nas redes sociais alguns dirão: 'Ué! pensei que a velha já tinha morrido. Nenhum político se atreverá a comparecer ao meu velório, uma vez que nunca compareci ao palanque de nenhum deles e me levantaria do caixão para vaiá-los"
Rita Lee sobre o seu próprio velório
Dois anos depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro no pulmão, Rita Lee, a rainha do rock cantado em português, perdeu a batalha contra a doença depois de vários tratamentos, ela que sempre fora uma resistente durante toda a sua vida.
Segundo nota oficial, morreu, no entanto, como sempre desejou, rodeada da família, "cercada de todo o amor" do marido Roberto de Carvalho, com quem construiu uma duradoura história de amor de 47 anos, e dos três filhos de ambos: Beto, António e João. "Se um dia morrer do coração é porque amei demais", dizia. O filho João, em jeito de homenagem, deixava, na terça-feira, escrito nas redes sociais, as palavras que certamente já traduziam o sentimento de muitos. "Você é foda. Você é, sim, a rainha dessa porra toda. O mundo perdeu uma das pessoas mais únicas e incríveis que já existiu. Eu perdi a minha mãe. Mas você é eterna". O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, decretou três dias de luto nacional. "Uma artista à frente do seu tempo. Julgava inapropriado o título de rainha do rock, mas o apelido faz justiça à sua trajetória", escreveu o governante numa nota de pesar.
Polémica, incorrigível, incómoda, resistente por natureza, "ovelha negra da família" (era assim que o pai a chamava), Rita Lee ficará para sempre como símbolo de liberdade, resistência e irreverência. Foi considerada a mulher mais perseguida do Brasil no tempo da ditadura e deu que fazer às autoridades até ao fim.
No último espetáculo que deu antes de se retirar, em 2012, acabou detida, então aos 64 anos, acusada de desacatos e incentivo à prática do crime. Rita tinha-se revoltado com a polícia que revistava alguns jovens por posse de maconha e chamou-os de "cachorros, cafajestes e covardes". Resultado: acabou presa e condenada a indemnizar os oficiais. A cantora já havia sido presa em 1976, aos 28 anos de idade, quando estava grávida de seu primeiro filho. Na altura foi acusada de usar drogas durante uma apresentação e teve a casa revistada por policias que viriam a encontrar 300 gramas de maconha, restos de cigarros e um narguilê. Foi levada para uma prisão feminina onde ficou por 10 dias.
'TRASAR' EM TUDO O QUE ERA LUGAR E POSAR 'NUA' VESTIDA DE FREIRA
A música de Rita Lee ficará para sempre gravada em forma de disco para a eternidade, primeiro com os Mutantes (entre outros projetos) e depois com a sua carreira a solo (‘Lança Perfume’, ‘Flagra’, ‘Desculpe o Auê’, ‘Agora Só Falta Você’ ou ‘Baila Comigo’ só para citar algumas canções) mas a sua história é muito mais do que música.
Na autobiografia de 2016 apresentava-se como uma septuagenária bem-vivida, bem-experimentada, que nunca vendeu a alma ao cartel empresarial, que "transou" com o grande amor da sua vida em tudo o que era local, de "banheiros de avião, a escadas de incêndios, de elevadores de serviço a camarins". Ao longo de mais de 300 páginas contava a história de uma brasileira "bipolar" que se chamava Lee em homenagem ao general confederado Robert E. Lee; falava de uma menininha "puta da vida" que, um dia, quando foi convidada para posar nua para uma revista masculina, respondeu que só o faria com três condições: vestida de freira, sem óculos e sem franja. "Era essa minha ideia de nudez", explicava. Nunca se fez de 'Madalena arrependida' com "o discursinho anti-drogas", nunca se culpou por ter entrado em muitas "trips", mas dizia que se orgulhava de ter saído de todas, reconhecendo que as suas melhores músicas haviam sido compostas em estado alterado ("as piores também").
Defendia com unhas e dentes a honra da sua velha amiga Elis Regina que morreu aos 37 anos. "Nunca vi Elis cheirando pó… Até hoje participo da teoria da conspiração de que o médico legista deu um jeitinho de envenenar a história dizendo que Elis era usuária de tóxicos e álcool".
VIOLADA, AOS SEIS ANOS, COM UMA CHAVE DE FENDAS
A vida de Rita Lee começou agitada logo na infância. Aos seis anos foi violada, na sua própria casa, por um técnico que tinha sido chamado pela mãe para consertar a máquina de costura. O homem apanhou a pequenina Rita sozinha e violentou-a com uma chave de fendas nas suas partes íntimas (o episódio acabou por virar um segredo entre as mulheres da família, para que o pai não cometesse uma loucura contra o homem e acabasse preso).
Ao longo da vida, a cantora teve três filhos, mas chegou a fazer um aborto ("até hoje me chicoteio pensando que talvez aquele baby poderia ter vingado, que foi um ato precipitado") e sempre defendeu o direito das mulheres ao seu próprio corpo. "Aborto não é uma mutilação no corpo da mulher. Parir e abandonar o bebezinho numa lata de lixo é que é criminoso. Parir e pôr para adoção é irresponsavelmente confortável. Parir e criar em condições sub-humanas é indigno". Sem papas na língua, também nunca se acanhou para falar de drogas, tendo revelado que um dia chegou a desembarcar no aeroporto de S.Paulo com um colar feito de pedrinhas de LSD. Ninguém deu por nada. "Aborto não é uma mutilação no corpo da mulher. Parir e abandonar o bebezinho numa lata de lixo é que é criminoso. Parir e pôr para adoção é irresponsavelmente confortável. Parir e criar em condições sub-humanas é indigno"
Quando ainda estava na escola entrou numa banda de meninas chamada Teenage Singers, mas seria mais tarde, com os Mutantes (um dos mais importantes projetos de rock da música brasileira), que alcançaria o primeiro grande sucesso (uns anos depois seria expulsa do grupo acusada de não ter calibre como instrumentista). Foi casada com um dos elementos da banda, Arnaldo Baptista, mas acabaria a rasgar o certificado de casamento em direto num programa de televisão. Foi com a sua saída do grupo que, numa tentativa de romper com o passado, deixou para trás os cabelos loiros e adotou o cabelo ruivo que virou uma das suas imagens de marca. "Como toda a mulher que quer mudar de vida, comecei pelo cabelo", viria a contar. Só mais recentemente, na década de 2010, é que viria a assumir o grisalho como a sua cor natural. "Adorei ter sido ruiva, mas encheu o saco".
O MAIOR FÃ: CARLOS III
Adorada pelo atual Rei Carlos III (consta que 'Lança Perfume' era nos anos 80 a música preferida do filho de Isabel II), Rita Lee chegou a ter uma paixão assolapada por todos os elementos dos Beatles, mas acabaria, revoltada, por trancar num baú, durante décadas, a discografia dos Fab Four quando soube que todos eles tinham casado. O grande amor da sua vida, Roberto de Carvalho (com quem esteve casada até ao seu último suspiro na passada segunda-feira), Rita Lee conheceu-o em 1976 através de Ney Matogrosso, a quem passou a chamar de "o cupido". O amor tinha vindo para ficar. "Alguma coisa acontecia no meu coração, corpo e alma, fazendo com que me sentisse a mais santa das criaturas e la más caliente de las mujeres", dizia, comparando a relação física que tinha com Roberto com a dos "coelhos". Na sua autobiografia descreve mesmo que chegou a "transar" com o marido na cama do hospital, um dia depois de ter dado à luz. "Tesão desenfreado, coisas de um casal apaixonado".
De ascedência norte-americana da parte do pai e italiana da parte da mãe, Rita Lee estudou numa escola francesa e falava fluentemente inglês, francês, espanhol e italiano. Era vegetariana, defensora das causas ambientes e dos direitos humanos (um dia aproveitou um espetáculo de Alice Cooper no Brasil, invadiu o camarim do cantor e roubou-lhe as suas duas cobras"). Foi atriz, tendo participado em quatro novelas da Globo, entre as quais 'Top Model'; lançou 11 livros ao longo da vida (uma autobiografia, seis infantis, ilustrações, letras de músicas e contos) e vendeu mais de 55 milhões de discos na carreira. Dizia que não era louca, mas "emocionalmente desequilibrada", considerava que viver era "perigoso" e avisou mais do que uma vez: "não me levem a sério, sou falsa, manipuladora, mentirosa e filha da puta. Escrevo o que vem na cabeça, só futilidades". E até chegou a reconhecer: "Gosto de mim, mas não é muito confortável ser eu".