Tozé Brito em concerto único no Altice Arena: “Hoje vive-se a uma velocidade louca e tudo é descartável"
Aos 71 anos de idade e no dia em que se apresenta na Altice Arena, o autor e cantor, recorda o "puto" que achava que sabia falar inglês, o início da carreira e as dificuldades enfrentadas que o levaram a tocar em cima de fardos de palha; fala da falta de qualidade da música atual e da massificação dos modelos, explica porque deixou a indústria da música, fala do desencanto pelo mercado e diz que se Salvador Sobral tivesse aparecido há trinta anos, hoje era um "gigante".
"Único é irrepetivel". Tozé Brito sobe esta quinta-feira ao palco da Altice Arena, em Lisboa, para um espetáculo que, ainda há um ano, o próprio julgava impossível de concretizar. Para ouvir está o disco ‘Tozé Brito (de) Novo’, trabalho que o músico lançou em 2021, quando comemorou 70 anos de idade, reunindo diversos artistas de gerações posteriores à sua (a maior parte ainda não tinha nascido quando Tozé começou nestas lides). Em palco estarão 20 músicos, todos os que fizeram parte do álbum: Ana Bacalhau, António Zambujo, B Fachada, Benjamim, Catarina Salina, Joana Espadinha, Miguel Guedes, Mitó, Samuel Úria, Selma Uamusse, Rita Redshoes, Tiago Bettencourt e Tomás Wallenstein. Ausente estará apenas Camané "que tinha um compromisso no estrangeiro", justifica.
O espetáculo solidário, organizado pela Associação Novo Futuro (que dá apoio a crianças e jovens em risco), conta ainda com a participação especial da ex-Doce Helena Coelho. "Não vamos voltar a conseguir juntar esta malta toda, ainda para mais com as condições que a Altice Arena nos proporciona", diz Tozé Brito. "O grande desafio foi mesmo combinar agendas. Isto foi muito complicado e é um achado. Conseguiu-se uma data em Outubro, que é mais calmo, e um dia a meio da semana, mas isto não vai voltar a acontecer". Para ouvir estão os grandes temas da carreira de Tozé Brito reinterpretados por uma nova geração de músicos, mas também "algumas surpresas", garante.
A atuação de Tozé Brito na maior sala do país, é o pretexto para uma conversa com um dos maiores autores e compositores portugueses de sempre com mais de 500 músicas assinadas, o músico que começou nos Pop Five, nos anos 60, e que integrou o famoso Quarteto 1111, Green Windows e Gemini; o "pai" das Doce, que descobriu Vitor Espadinha para a música, que acreditou nos Xutos & Pontapés e que escreveu para artistas como Carlos do Carmo, Simone de Oliveira, Ana Moura, Tony de Matos, Paulo de Carvalho, Dulce Pontes, Adelaide Ferreira ou Lúcia Moniz; um dos homens que melhor conhece, por dentro, a indústria e o mercado da música tendo passado pelas editoras Polygram, BMG e Universal (que abandonou em 2018). Tem a palavra Tozé Brito.
Não querendo chamá-lo velho, sente-se um guru desta malta nova que hoje faz música e que agora aparece a reinterpretar as suas canções?
(risos) Epá! guru não, mas velho sim, porque afinal já tenho 71 anos. Esta idade já me dá quase um estatuto de senador (risos). Agora a sério, são já muitos anos. Eu gravei o meu primeiro disco com apenas 16 anos com os Pop Five, em 1967. De lá para cá foram muitos anos a escrever, a compor, a cantar, a produzir e a editar canções. A minha vida tem sido isto. Claro que eu sou um sénior, bem sénior, mas também tenho que dizer que estes momentos, como o espetáculo na Altice Arena, me transmitem uma energia muito positiva, porque vou subir a palco com pessoas bastante mais novas do que eu.
"Guru não, mas velho sim, porque afinal já tenho 71 anos. Esta idade já me dá quase um estatuto de senador"
Para ser mais preciso, alguns destes artistas são quarenta anos mais novos do que o Tozé!
Pois é, por isso é um orgulho enorme ver duas gerações à frente da minha partilharem um património cultural que tem décadas. O meu maior prazer em tudo isto é de facto vê-los a entrar na pele das canções por vontade própria, porque alinharam neste projeto. Ainda por cima foram eles que escolheram as canções que queriam interpretar.
Ao final de tantos anos, quando ouve estas canções agora com novas vozes e novos arranjos, ainda consegue surpreender-se com elas?
Claro que sim. Algumas destas canções levaram uma volta surpreendente. Há aqui canções que estavam perdidas há trinta ou quarenta anos. Muitas eram canções datadas, com arranjos pesados e orquestrais. Agora, ganharam leveza e modernidade. Claro que está lá tudo, a melodia e a letra, mas a maneira como estas canções estão vestidas dá-lhes uma vida completamente diferente dos originais. No fundo, o curioso é ver que as canções que fiz há quarenta anos ainda estão cá hoje. E daqui a outros quarenta continuarão de certeza.
Essa intemporalidade das canções ainda se consegue atualmente?
Esta malta que vai subir ao palco comigo, vive hoje em condições completamente adversas no sentido das suas canções perdurarem no tempo, porque hoje há tanta coisa e a profusão é tão grande, sobretudo com a era do digital, que é muito difícil que uma canção escrita hoje, esteja a ser cantada daqui a 40 anos. E digo isto sem qualquer menosprezo por aquilo que se faz hoje em dia que tem muita qualidade. Digo mesmo que hoje há coisas tão boas ou melhores do que aquelas que escrevemos.
Mas quem começou a fazer música há 40 ou 50 anos abriu muito do caminho para quem veio a seguir. Sente esse reconhecimento?
Sim, mas isto tem que ser visto por dois ângulos. Por um lado, tivemos sorte porque na altura em que muitos de nós apareceram, havia um canal de televisão que tinha o festival da canção. E quem passasse por ele ficava na memória das pessoas, porque antigamente Portugal parava para ver o festival. Hoje em dia, o país não pára para ver coisa nenhuma. Vive-se a uma velocidade louca e tudo é descartável. A minha geração foi ouvida com outra atenção.
"Hoje, consegue-se gravar um disco em casa no 'pro tools', pô-lo no Youtube ou no Spotify e em pouco tempo ser ouvido do outro lado do mundo. Hoje já ninguém precisa nem de televisão, nem de rádios nem de editoras"
Mas hoje há mais meios de divulgação!
Sim, é verdade, a minha geração teve mais dificuldade em ser ouvida. Hoje, consegue-se gravar um disco em casa no 'pro tools', pô-lo no Youtube ou no Spotify e em pouco tempo ser ouvido do outro lado do mundo. Hoje já ninguém precisa nem de televisão, nem de rádios nem de editoras.
E qual é a desvantagem disso tudo?
É a oferta. Hoje em dia tens um milhão de pessoas no mundo a pôr canções cá fora diariamente. E por isso torna-se muito mais difícil ser intemporal.
O consumo da música banalizou-se?
Para mim sim, mas também já ouvi muita gente dizer que isto é a grande oportunidade para toda a gente ter o seu momento, os tais quinze minutos de fama de que falava o Andy Warhol. E depois quando há tanta coisa a aparecer não há crivo de qualidade nenhum.
Mas não acredita que o público faça a peneira entre o bom e o mau?
O público também é uma geração nova que vive a um ritmo alucinante. É uma geração que tem os seus artistas preferidos, mas se estes artistas não estão sempre a produzir automaticamente são engolidos e quase esquecidos. Antigamente, parava-se dois anos para fazer um disco novo e ninguém nos esquecia, e isso hoje é impossível. Trabalhou-se assim até aos anos 90, quando apareceu o Napster [primeiro serviço de música partilhada online]. Foi aí que começou a grande revolução no mundo da música.
Hoje já não se fazem ídolos para a vida?
Há muito poucos. E os que hoje existem nem sequer são os mais recentes. Hoje é tudo muito mais passageiro e esquece-se tudo muito mais facilmente. Se a vitória do Salvador Sobral na Eurovisão, por exemplo, tivesse acontecido há trinta anos, ele hoje era um gigante. A própria irmã, a Luisa Sobral, que foi quem escreveu o 'Amar pelos Dois' e que é uma das grandes compositoras deste país, teria outra visibilidade e notoriedade se tivesse aparecido nos anos 60 ou 70.
Foram estes aspetos que o levaram a deixar a indústria e o mercado da música?
Também! A partir do ano 2000 tudo isto começou a desencantar-me muito. O crescimento da net desmotivava quem queria apostar em valores sólidos. Éramos atropelados todos os dias pela profusão de gente nova e canções novas.
"Se a vitória do Salvador Sobral na Eurovisão, por exemplo, tivesse acontecido há trinta anos, ele hoje era um gigante. A própria irmã, a Luisa Sobral, que foi quem escreveu o 'Amar pelos Dois' e que é uma das grandes compositoras deste país, teria outra visibilidade e notoriedade se tivesse aparecido nos anos 60 ou 70"
Mas isso também ajudou a liberalizar e a democratizar o direito de um músico se fazer ouvir, até porque nem todos conseguiam chegar a uma editora?
Ninguém tem a razão toda. A questão é que antigamente quem ia bater à porta das editoras tinha de ter um talento acima da média ou tinha de levar algo de novo. Nós, por exemplo, procurávamos na indústria identidades próprias e estéticas muito pessoais. Curiosamente é o contrário do que se passa hoje em dia. O público aquilo que pretende é a massificação da mesma coisa. Vou dar um exemplo: A Carolina Deslandes tem um talento tão grande, que neste momento existem mais não sei quantas dezenas de mulheres a tentarem fazer exatamente o que ela faz. Depois lá temos que pegar no Shazam para ver quem está a cantar. A arrasto disto estão as rádios que tocam todas as mesmas coisas. Vão todas atrás da velha frase "o que está a dar" e ninguém consegue apostar no que não está a dar.
Ainda se lembra da primeira canção que escreveu?
Claro! Está no primeiro EP dos Pop Five, de 1967, e chama-se 'You'll See'. Na altura eu tinha 16 anos e pensava que o inglês é que era bom (risos). A letra era péssima, mas a canção não era má.
"A Carolina Deslandes tem um talento tão grande, que neste momento existem mais não sei quantas dezenas de mulheres a tentarem fazer exatamente o que ela faz"
E a primeira que escreveu em português?
Foi no Quarteto 1111, três anos mais tarde. Quando cheguei, o José Cid disse-me logo: "Vais passar a escrever em português". E eu pensei que estava perdido (risos). A primeira canção que musiquei em português, assim é que é, foi um poema de Gil Vicente, 'Todo o Mundo e Ninguém', que foi a tal canção que o Jay-Z mais recentemente veio a usar como sample de uma música dele. Mas a primeira que eu escrevi chama-se 'Uma Nova Maneira de Encarar o Mundo'. Ou seja, a minha passagem dos Pop Five para o Quarteto 1111 obrigou-me a reformular todo o meu pensamento. Foi aí que cheguei à conclusão: "se estou em Portugal é em português que tenho que escrever e cantar".
Como foi essa altura, quando as condições para tocar eram quase anedóticas?
Para começar, éramos nós que carregávamos com os instrumentos porque ainda não havia a figura do roadie. Lembro-me que no Quarteto tínhamos de ser os quatro a carregar o orgão Hammond que era pesadíssimo. Tocámos em atrelados, carros de bois e em cima de fardos de palha. Depois fazíamos diretas para casa, porque nem os cachets que ganhávamos davam para parar a descansar num hotel.
E as viagens eram longas!
Sim. Ainda sou do tempo em que ir de Lisboa para o Porto se demorava seis horas, desde que não houvesse percalços, como um acidente, por exemplo. Nesses casos, poderia demorar o dobro. Era muito violento, porque nós tocávamos sempre umas três horas e depois arrancávamos às três ou quatro da manhã. Quando as auto-estradas apareceram foi um luxo.
"Tocámos em atrelados, carros de bois e em cima de fardos de palha. Depois fazíamos diretas para casa, porque nem os cachets que ganhávamos davam para parar a descansar num hotel"
Qual foi o espetáculo mais insólito que fez?
(risos) Foi no norte, numa aldeia perto de Oliveira de Azeméis, em que o palco estava montado de um lado da estrada, o público estava do outro (que fazia uma espécie de uma encosta) e de vez em quando os carros passavam entre nós (risos). Isto foi com Green Windows logo a seguir à revolução, aí em 74/75. Recordo-me que ainda estiveram umas dez mil pessoas à vontade a ver-nos. Mais insólito do que isto, não me lembro.