
Fico perdido quando sei quem sou,
a frase era do filme que ambos viam, sozinhos na mesma sala de cinema escura, um em cada canto,
ando todos os dias à procura de me soltar de mim, sabes?,
ele gostou daquela frase, escreveu-a no telemóvel, quis enviá-la para a mulher que amava, mas quis o acaso que percebesse que alguém tinha o Bluetooth ligado, de um telefone semelhante, com um nome que mais não era do que o nome da banda favorita dele,
quando for grande quero ser capaz de amar o que temo,
era outra vez o filme a falar, era outra vez ele a gostar da frase, a querer enviá-la para a mulher que amava, mas aquele Bluetooth, ai, aquele Bluetooth, era mais forte do que ele, foi mais forte do que ele, escreveu as duas frases,
ando todos os dias à procura de me soltar de mim, sabes?,
quando for grande quero ser capaz de amar o que temo,
fez uma captura de ecrã, escolheu aquela pessoa, carregou em enviar, recebeu a indicação de que a mensagem havia sido entregue, abanou a cabeça,
o que fui eu fazer?,
foi ele quem disse, mas não disse sozinho, no filme um dos actores também o dizia,
não sei quem és mas gosto das tuas palavras,
foi a resposta que chegou em segundos, poucos, pouquíssimos,
ele não queria acreditar, olhou em redor, a sala escura e só uma luz, uma luz de telemóvel, ao longe, do outro lado, mesmo do outro lado,
não sei quem és mas aposto que vais mudar a minha vida,
o actor do filme continuava, ela ouviu, anotou, quis enviar para aquele Bluetooth que tinha o nome do seu escritor favorito,
não sei quem és mas aposto que vais mudar a minha vida,
carregou em enviar mas era tarde demais, a mensagem já não foi lida por ele, pelo menos no seu telemóvel, leu mesmo no telemóvel dela, ali, ao lado,
estavam juntos na mesma sala de cinema,
é uma pena termos de nos separar mas tem de ser,
assim acabou o filme,
o do ecrã, o deles não, o deles ainda não acabou, demorou mais uns dois ou três minutos, até o empregado de limpeza aparecer e meter alguma ordem naquilo,
há filmes que mudam a vida de quem os vê, sim,
podia ler-se nos convites de casamento que alguns meses depois enviaram a todos os familiares e amigos,
mas também há filmes que mudam a vida de quem não os vê.
Talismã: s.m. Aquilo que costuma dar sorte a quem o usa; o mesmo que trabalho.