
Só um burro não chama burro a si mesmo com alguma regularidade.
Eu chamo. Aqui vai: burro. Burro, burro, burro, burro. BURRO. Pronto: já estou mais limpinho, mais humano. O humano carece, cada vez mais, de comprometimento com o descomprometimento: precisa de se levar menos a sério, de pensar menos que é o fim do mundo sempre que algo que não termina o mundo acontece.
Qualquer idiota se leva a sério – mas só uma criatura inteligente desvaloriza o que não a valoriza.
E é só isso: há momentos em que falhas, momentos em que estás aquém, momentos em que tudo parece ruir no interior de ti; é nesses momentos que o gajo que és aparece: se és um palerma com a puta da mania vai mesmo ruir tudo no interior de ti e jamais serás capaz de sair dos escombros com capacidade para andar; se és uma pessoa com a certeza de que não passas de mais uma pessoa vais sair do meio dos escombros a voar, se necessário, porque só quem não tem asas sabe o que custa voar – os pássaros voam como nós aspiramos a casa, simples rotina.
O pior dos defeitos é a imortalidade – até porque, bem vistas as coisas, não existe.
Mas mata. Mata mesmo. Não faltam relações, empresas – até vidas inteiras –, destruídas pelo complexo de imortalidade: o imortalismo. Aprende de uma vez por todas: vais morrer e tens de estar mortinho por viver. Por agarrares na bosta toda que te vai aparecer, e vai aparecer tanta, garanto-te, e moldá-la de maneira a ser suportável: de maneira a tu mesmo te suportares. Tens de suportar em ti aquilo que te vai fazer suportar o que te acontece – e mais ainda o que acontece em ti (e são coisas tão diferentes, tão opostas, até: quantos não viveram experiências felizes por fora e tão tristes por dentro?).
Se não és capaz de ver a tua mortalidade não és capaz de ver a tua falibilidade.
E a tua fragilidade, e a tua finitidade (sim, eu sei que não existe mas agora já está e passa a ideia: a ideia de que és finito e tens de ter consciência disso para saboreares como tens de saborear, ou pelo menos como deves saborear, o que há para saborear, capice?). Somos mais pessoas quando percebemos que faz parte de nós acabar – e faz parte de nós brincar, também, já agora. Nunca se brinca com o que magoa, quando é precisamente com o que magoa que se deve brincar.
Quando morrer quero humoristas no meu funeral, bandas de música que façam dançar. Quando morrer quero que tudo viva, que tudo continue a viver em meu redor. Era para isso que todas as mortes deveriam servir: para fazer quem está vivo viver melhor. Que haja uma utilidade dessas em cada morte, decreto eu, enquanto estou vivo.
Não é de quem tem medo de morrer que tenho pena; é de quem tem medo de viver.
Maleita: s.f. O mesmo que aprendizagem; não são os que mais estudam que mais sabem – são os que mais vivem. Quem viveu mais teve mais hipóteses de falhar mais e de se magoar mais – o que é mesmo que dizer que teve mais hipóteses de aprender mais. Não são os burros que não mudam; são os mortos.