
[vícios]
Somos viciados no limite. Ou então apenas viciados em esperança, no limite. Precisamos, com regularidade, de uma corda que nos agarre, nem que depois nos enforque. Gosto de estudar a inveja, por exemplo. Sem condescendência, sem juízos. Apenas analisar para tentar perceber. Ainda não o consegui, lamento.
[desesperos]
Há quem procure, com desespero, a dor do outro. Será, com certeza, a única possibilidade de ter algo para sentir.
[futuros]
Procura-se, no futuro, tudo o que nos alimenta. É nele que se deposita a "possibilidade de". E é a "possibilidade de" que, mais coisa menos coisa, vale por tudo o que somos. Somos viciados no "pode ser que". Pode ser que amanhã doa menos, pode ser que amanhã ame mais, pode ser que amanhã passe, pode ser que amanhã seja feliz. Fatalmente, porque a vida acontece, o futuro acontece. Pode ser que valha a pena.
[chuvas]
A chuva é uma espécie de melancolia natural. Olhamo-la e pensamos. É organicamente impossível olhar para a chuva a escorrer no vidro e não pensar. A chuva funciona, então, como um detector de mentiras: uma radiografia de interiores. Quando vires alguém feliz ao ver a chuva inveja-o. E fica feliz também — para alguém, ao ver-te, te invejar também. A felicidade é muitas vezes aparência pura: uma hipocrisia neurológica. Mas continua a ser felicidade, não é?
[descobertas]
O bebé do vizinho chora como se lhe doesse o mundo. Talvez doa, talvez descobrir tudo pela primeira vez possa magoar. A mim magoa, ainda magoa. Ontem descobri pela primeira vez que sempre que a porta se fecha contigo atrás me dói a tua ausência pela primeira vez. E já dói assim desde a primeira vez. Provavelmente amar é sentir sempre tudo pela primeira vez, juro que é a primeira vez, e espero que a última, que penso nisto.
Ofender: v. Arte de tentar limpar o que dói causando dor no outro. O braço armado da frustração.