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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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E depois do adeus

Antes do tempo das geadas tenho de podar as hortênsias, senão para o ano vão crescer demasiado. Era bom que se pudesse fazer o mesmo com o amor: podar aqui e ali, para não sair fora de controlo. Mas quando o amor vem com muita paixão na mala, sabemos o quanto isso é impossível.
05 de outubro de 2018 às 23:18
Paulo de Carvalho, e depois do adeus, canção, cantor, festival da canção, rtp
Paulo de Carvalho, e depois do adeus, canção, cantor, festival da canção, rtp

Cruzei-me ontem com o Paulo de Carvalho num restaurante improvável, o Telheiro do Verga Mola em Famões. Desconheço se mora na zona, eu fui lá parar porque a minha amiga Mitó enviuvou e pediu guarida a uma amiga de infância.

Foi tudo de repente: um dia estava a separar-se do marido por várias razões que incluíam traições e desvios de dinheiro da conta conjunta, e no momento a seguir ele morre num desastre de carro numa estrada daquelas que andam a precisar de obras há mais de 10 anos e nunca ninguém fez nada para minimizar os riscos. Quando ainda estavam a chorar a morte do filho e do irmão, os pais e a única irmã começaram a disputar a herança, desde o carro até à casa. A Mitó, que não tem filhos, entrou em colapso emocional e refugiou-se no mais improvável dos esconderijos, a casa da Maria do Carmo em Famões.

Diz a Maria do Carmo que a tasca já conheceu melhores dias, mas como ninguém estava com cabeça para cozinhar, lá fomos as três comer umas iscas com todos. Elas beberam cada uma o seu copo de tinto de casa, eu fiquei-me por uma água das pedras. O vinho há muito tempo que me cai mal, se é branco dá-me dores de cabeça, se é tinto, dá-me a volta ao estômago, portanto prefiro não arriscar mais do que dois ou três copos de rosé por ano, no pico do Verão, que agora já é na época em que o Outono se anunciava.

Na mesa mais escondida do fundo do boteco estava o Paulo de Carvalho a jantar sozinho, de cabelo grisalho, brinco na orelha e aquele ar de galã reformado que o caracteriza. E claro, como não podia deixar de ser, lembrei-me de ti e do nosso último abraço, que nenhum de nós sabia ser o derradeiros, mas que, com o tempo e e avida, assim se cristalizou.

O Verão está acabar, e afinal parece que nunca mais acaba. Este fim-de-semana vou com a Mitó e a Maria do Carmo para a minha casinha de bonecas no Meco. É apenas um cantinho alugado, uma fatia de paraíso com 60 metros quadrados, arranjada com muito amor, com um jardim duas vezes o tamanho da casa que tem árvores de fruto e ervas de cheiro. As árvores já la estavam, flores e plantas foram por minha conta. Antes do tempo das geadas tenho de podar as hortênsias, senão para o ano vão crescer demasiado. Era bom que se pudesse fazer o mesmo com o amor: podar aqui e ali, para não sair fora de controlo. Mas quando o amor vem perdido no meio de muita paixão, sabemos o quanto isso é impossível. Eu que o diga, que passei três anos a inventar consultas médicas, reuniões de emergência na escola e aflições domésticas para me escapar para o ninho do Meco contigo. Sempre que chegavas, olhavas para o jardim e dizias:

- É sempre esta paz, este verde para lavar os olhos, só me apetece estar aqui

E depois tomavas-me nos teus braços e eu voava tão alto em cima de ti que sentia as asas a rasarem o sol. Eram voos longos e silenciosos, tu olhavas para o meu corpo como um lobo, agarravas-me com força e depois puxavas-me para ti até que a nossa pele fosse apenas uma. E depois da viagem alucinada ao planeta dos prazeres secretos, puxavas a minha cabeça para o teu peito e contavas-me a tua vida, as tuas preocupações, os teus desejos, e eu ouvia-te com  todo o amor, porque amara também é saber ouvir, amar é ouvir com o coração tudo o que o outro nos diz e sobretudo tudo o que não nos diz.

Durante a nossa última escapadela estivemos a ouvir músicas antigas, tu mostraste-me o Sozinho do Caetano Veloso e eu mostrei-te E Depois do Adeus, que tu sabias de cor e entoaste com grande confiança e a bastante afinação.

- Como é que sabes tão bem esta música?

- O Paulo de Carvalho foi nosso vizinho em casa dos meus pais, a minha mãe obrigou-nos à minha irmã e a mim a aprender a canção e um dia levou-nos a casa dele para exibir os nossos dotes.

- A sério? E ele, como reagiu?

- Ficou feliz. Sabes que nenhum artista resiste a uma massagem ao ego. Mas eu não sabia que eu estava a cantar. Os versos eram demasiado poético e profundos para um rapazinho de 10 anos que gostava de ver o D’Artacão.

E depois do adeus, e depois de nós, teu lugar a mais, tua ausência em mim. Às vezes ainda te imagino com 10 anos, a entoar versos indecifráveis, porque no fundo acho que não cresceste assim tanto e que o amor ainda é uma aventura estranha para o teu coração de adolescente disfarçado de senhor crescido.

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