'
FLASH!
Verão 2025
Compre aqui em Epaper
Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Um lugar mellhor

Nunca me faltou a resposta na ponta da língua, para deleite dos meus amigos e terror dos meus namorados, pois é sabido que quanto mais chateada estou, mais mordaz me torno, qualidade que o tempo apurou.
14 de setembro de 2018 às 07:00
Amizade, Margarida Rebelo Pinto
Amizade, Margarida Rebelo Pinto Foto: DR

Ana Helena. Quarenta e cinco anos, a cara redonda de boneca de porcelana, a voz suave, o cabelo comprido e um olhar onde cabe toda a beleza do início do mundo. Não é todos os dias que esse olhar se tolda, apenas quando te perdes do alto da tua tristeza, expressão tua escrita numa mensagem, certamente de rajada, como um espinho que te sai do coração onde te entram mais setas do que seria recomendável para a tua saúde emocional.

Ana Helena. O teu nome combina dois que são pilares da minha vida. Helena é o nome da minha mãe, o pilar mais forte, o porto mais seguro, a sabedoria mais plácida, a generosidade mais pura. E Ana, o nome da minha babysitter de bairro, a minha primeira amiga mais velha, que morava no primeiro andar do prédio onde passei os primeiros 20 anos da minha vida.

A Ana era alta e bonita – ainda é – com traços finos e um nariz afilado que fazia lembrar e Meryl Streep – e ainda faz. Muito tímida, tinha alguma dificuldade em meter-me na ordem, já que eu tinha não apenas bichos carpinteiros, mas também serralheiros, pintores, estucadores e toda a sorte de fazedores dentro da minha imaginação galopante e da minha actividade frenética. Depois de ter tomado conta de mim durante quase uma década, a Ana abraçou com confiança a vocação de educadora de infância. Dizia, meio a brincar, meio a sério, que depois de mim, conseguiria fazer o mesmo com qualquer criança. Sempre fui uma menina tão irrequieta, que uma amiga da minha mãe, depois de me ter observado um dia inteiro na praia e fazer rodas e a dar mergulhos à golfinho, disse:

- A tua filha parece uma garrafa de champanhe acabada de abrir.

Era uma senhora muito magra, de porte seco e austero, que tinha o hábito de me fixar como se eu fosse uma atração do Jardim Zoológico. À noite, durante o jantar, quando a minha mãe contou ao meu pai a comentário, disparei sem pensar:

- E essa amiga da mãe parece uma perna de uma mesa de estilo.

Nunca me faltou a resposta na ponta da língua, para deleite dos meus amigos e terror dos meus namorados, pois é sabido que quanto mais chateada estou, mais mordaz me torno, qualidade que o tempo apurou. Daí até expor ao ridículo e inventar alcunhas terríveis, é um passinho de formiga. Sei que sou muitas vezes injusta, mas sinto um formigueiro dentro de mim tão grande que quase nunca me calo. Não é por acaso que no Rio de Janeiro tu e todas as minhas amigas me chamam a Fofa Cruel; tão depressa sou um desvelo de charme e de simpatia, como me viro como uma pantera se me chateiam. No Brasil fofa quer dizer querida e cruel, claro está, que dizer cruel.

Às vezes acho que é o que te falta, querida Ana Helena, pores a garras de fora quando é caso disso. Tal como eu, não foste educada para o lixo do mundo, e apesar de trabalhares com a doença e miséria diárias no hospital, continuas a ser uma princesinha fora do serviço de urgências. No Brasil existe uma expressão maravilhosa para as mulheres que nunca perdem a doçura, a candura, a ingenuidade e a pureza de uma infância e juventude protegidas, diz-se que são muito mocinhas.

Olho para ti a fazer bancos de seguida, quase não dormes, criaste o teu filho sozinha e tomas conta da tua mãe que todos os dias perde um pouco mais de memória e de juízo, voas em helicópteros para resgatar feridos a quem dás assistência médica no ar, és uma heroína, uma guerreira, uma cirurgiã de renome, cozinhas com esmero e recebes com amor. E sempre que te distrais, deixas que um patife entre no teu coração desavisado. Depois és forte e sabes virar as costas se te pisam os calos, mas é sempre com delicadeza e com elevação que lhes dás com a porta na cara.

Podias ser mais como eu, olho por olho, dente por dente, e na hora certa, bater com toda a força, sem avisar nem pedir licença ou desculpa. É que os adultos são com as crianças, só vão até onde os deixamos ir. Não te deixes entristecer por não ter aparecido ainda alguém com coração e com cabeça para ti. Nunca é fácil para mulheres como tu, que não se contentam com o qualquer acaso que venha à rede.

Espera sem esperar, sonha sem voar, segue o teu caminho sem dó de deixar cair quem não te merece. O mundo é teu, sempre foi, porque o mundo é daqueles que se entregam sem medo à vida e ao amor, mesmo quando se enganam. O mundo é sempre mais de quem acredita do que de quem tem medo, e tu não sabes, mas as pessoas do teu mundo acreditam em ti para fazeres dele um lugar sempre melhor.

Leia também
Leia também
Leia também
Leia também

você vai gostar de...

Mais notícias de Pessoas Como Nós

A menina Clarinha e eu

A menina Clarinha e eu

Não sei quantas vezes tentei esquecer-te, talvez menos do que tu e mais do que o meu coração aguenta, a única que sinto é que, cada vez que a dou espaço à razão, o meu coração começa a encolher-se como um bolo sem fermento, a vida fica sem açúcar e os dias sem sabor.
Mergulhar no futuro

Mergulhar no futuro

Agora, enquanto a ameaça da pandemia pairar sobre Portugal e o mundo, espero pacientemente por aquele momento mágico em que vou poder voltar a mergulhar no mar. A vida ensinou-me a mergulhar no futuro, mesmo quando o futuro é um lugar vago e incerto.
Com cinco letras apenas

Com cinco letras apenas

É engraçado como as palavras mais belas e mais importantes têm três, quatro ou cinco letras. Mãe, pai, avô, avó, tio, tia, filho, paz, saúde, sonho, amor, fado. Beijo, abraço, toque, sim, não, já, agora, calma, vem, fica.
Claras em Castelo

Claras em Castelo

Estar fechada em casa não me custa, o que me custa é não ver o meu filho e os meus pais, as minhas sobrinhas e os meus irmãos, as minha amigas e amigos. Na verdade, o que me custa ainda mais, é não acreditar que, quando a pandemia passar, as pessoas não vão mudar. Agora acreditam que sim, estão paralisadas pelo medo, mas são apenas boas intenções, porque as pessoas não mudam.

Subscrever Subscreva a newsletter e receba diariamente todas as noticias de forma confortável