
O verão quase a chegar a fim e ainda não comi aquele bife com batatas fritas da praxe na tasca da vila. Trata-se de um clássico secreto da zona, já que nas vilas e aldeias junto ao mar os grandes best-sellers gastronómicos envolvem sempre peixe, marisco ou bivalves. Açordas, massadas, ensopados, caldeiradas, ao alho, à Bulhão Pato, à lagareiro, a murro, grelhados, e agora mais recentemente em ceviche, mas sempre do mar. Parece que nenhum país do mundo sabe tanto disto como nós, não há tasca nem chafarica onde não se sirva uma açorda de gambas ou um linguado grelhado. Sempre apreciei o linguado por duas razões: são o peixe com espinhas mais fácil de arranjar e têm os olhos do mesmo lado. Gosto de pensar que estão do lado bom da vida, ou, pelos menos a olhar para o lado bom da vida, mesmo depois de escamados e reduzidos ao seu destino final, inertes numa travessa quase sempre de alumínio, rodeados de batata cozida e de salada mista.
Deixo de conseguir olhar para o lado bom da vida quando passo muito tempo sem trincar um bom bife. Que me perdoem os vegetarianos, a nova ordem vegan e a malta mais naturista, mas depois de um mês a viajar pela Ásia numa fase mais espiritual da existência, acreditei com todo o meu coração que devia deixar de ingerir carne, a bem do meu organismo e a bem do planeta. O resultado foi um cansaço tão grande que me fez abrir os olhos e voltar ao bife como quem volta à casa da partida, ao jardim da infância, à praia da adolescência, ao velho mundo que é aquele lugar onde nos sentimos em casa.
O conceito de bife com batatas fritas tem no meu imaginário outras conotações bem mais abstractas, quiçá quase poéticas. Tal como no Renascimento existiu a aurea mediocritas – o ideal de vida que enaltece a simplicidade e frugalidade diárias de forma a que o artista possa criar livremente – também eu acredito que uma vida simples com um amor simples numa casa térrea, um tanque sem unicórnios e um carro utilitário sejam o segredo da paz que é irmã da felicidade. O tal bife com batatas fritas, desde que seja do lombo, é claro. E é precisamente aí que reside o busílis da questão. O bife tem de ser de primeira linha, ou então prefiro uma omelete. E tal analogia aplica-se à eterna questão de encontrar um par.
Nunca foi tão fácil conhecer pessoas como hoje: as redes sociais e as aplicações tornaram tudo possível. Citando um pirata emocional a caminho da reforma que nunca conseguiu ser fiel em nenhumas das relações que teve, uma mulher precisa de uma razão e um homem precisa de um lugar. Talvez este princípio tão prosaico quanto verdadeiro tenha servido de base à invenção dos Tinder e seus semelhantes, já que uma das informações que aparece abaixo da fotografia é a distância em quilómetros. Não é preciso abrir uma conta, basta que um amigo solícito ou uma amiga aborrecida com a rotina o faça para te mostrar como funciona.
Depois de passar pouco mais de cinco minutos sentada ao lado de uma dessas amigas, comecei a sentir-me vagamente mareada com tanto movimento no ecrã do seu androide: para a esquerda ela deitava a rapaziada fora, para a direita ela aprovava, e de vez em quando aquilo fazia match. Não sei se tem a ver com alguma zona do cérebro afetada por maleitas antigas, o facto é que me senti enjoada e voltei a mergulhar na minha leitura – um romance do Joel Dicker, por sinal não o melhor – e esqueci por momentos a atividade frenética da minha companheira de férias.
O pior foi a seguir, quando sem me aperceber, ela marcou sem aviso prévio encontro num dos restaurantes da vila não com um palerma, mas com dois palermas em férias, um que conheceu no Tinder e outro que era amigo dele. Eu estava a começar a cortar o tão desejado bife quando ela me diz:
- Esses dois que acabaram de entrar devem ser o meu date e um amigo para ti.
- Para mim??? – perguntei, paralisada pela estupefação, prevendo já o habitual estado entre o bocejo e o vómito de que padeço em alternância cada vez que sou obrigada a conviver à mesa com desconhecidos.
Os palermas aproximaram-se, a minha amiga apresentou-se e eu comecei a falar em francês. Disse que me chamava Aurélie e que não falava uma palavra de português. Os rapazes sentaram-se durante não mais de dez minutos e abandonaram o local depois de perceberem que não iriam arrancar nem uma palavra da minha boca.
- Não me voltes a fazer uma partida destas, - adverti a Maria – senão nunca mais vou de férias contigo.
- Porquê? Eles até eram giros.
Não respondi. Para quê? No fundo a Maria ainda acredita que vai encontrar o Príncipe Encantado. E já só quero uma vida normal, bife com batatas fritas, um abraço ao final do dia e o teu olhar a sorrir sempre acordo. Não é pedir demais, pois não?
Ninguém nasceu para ser emocionalmente vegetariano. Talvez uma alface, mas um ser humano, não acredito.