
Se não me separar do Zé Maria, vou morrer mais cedo. É com este pensamento que desperto todos os dias. Acordo meio zonza, são os efeitos secundários da medicação, mas era inevitável, porque sem a ajuda química já estava a passar demasiadas noites em branco. Foi a Maria José me convenceu a tomar meio Vallium à noite. Ao menos enquanto durmo não o vejo ao meu lado, não o oiço a ressonar, não reparo nos pêlos que lhe saem das narinas, nem nas rugas que a pele já faz atrás da orelhas.
Não me lembro quando foi a última vez que fizemos amor. Nem sequer da última em que tivemos sexo. Terá sido no seu dia de aniversário? Ou no dia do meu? Não, nesse dia não houve nada. Terá sido na passagem de ano? Não me lembro porque não me quero lembrar.
Nos últimos anos o sexo tem sido horrível. Não o sinto presente, é como se tivesse um corpo estranho dentro de mim. A única coisa de que me lembro, infelizmente demasiado bem, é do alívio que sentia quando ele acabava. Saía de cima de mim e virava-se para o outro lado. Eu ía à casa de banho tomar um duche e quando voltava para a cama, ele já tinha adormecido. E o pior é que já nem me importava, habituei-me aquela miséria sexual. Não havia preliminares antes nem um beijo depois. Nada. Só o acto a seco, mecânico e desinteressado, como quem arranca um dente sem anestesia, sempre pior e pior, a cada vez que se repetia. A pouco e pouco, tudo foi desparecendo, como um quadro que perde as cores quando passa demasiados exposto à luz solar.
Deixei-me enrolar naquilo. Talvez no fundo acreditasse que era apenas uma fase. Mão não era e não é. O Zé Maria desinteressou-se e desligou-se. E com o tempo, eu também. A proximidade afasta as pessoas, sobretudo se em vez de falarem, trocam apenas algumas palavras por dia, se em vez de se abraçarem à noite, se vira cada uma para seu lado, se em vez de se divertirem juntos com os filhos ou sem eles, entram numa dinâmica de cada um ter a sua vida. Parece que somos muito bons a planear a vida, mas depois não somos bons a vivê-la.
A minha vida foi mudando de foco: primeiro era a casa, o casamento e os miúdos, os colégios, os trabalhos de casa, a, as actividades desportivas porque três rapazes dão muito trabalho e se não os cansasse ainda davam mais, as compras, as férias, as roupas, todo esse labirinto da armadilha doméstica que nos asfixia durante anos, mas uma pessoa abraça aquilo com uma missão e nem se atreve a pensar em que dia pode terminar porque às tantas já não sabe viver de outra maneira.
Este desamor está a matar-me um bocado todos os dias. Qualquer dia chego aos 50 e ainda não vivi nada. Tenho de me separar. A casa é minha, foi a avó Benedita que me deu, portanto é tudo mais simples. Peço-lhe que saia. Não posso ter pena dele. Tenho de ter pena de mim, pensar no meu futuro, senão vou apodrecer de tédio nesta não-relação. Penso em tudo isto enquanto ele toma duche com a música aos berros. Adora ouvir cenas dos anos 80, os América e outros xaropes. Se ao menos ouvisse coisas boas, mas não, sempre lhe deu para a parolada musical. Ainda tem uma aparelhagem na casa de banho, daquelas compactas gaveta para cassetes e CD. Nem com a humidade aquilo se estraga, raios partam as aparelhagens antigas que são tão resistentes como os jeeps da primeira geração.
Estou farta dele e de tudo o que tem a ver com ele. Irrita-me o cheiro da pele, os sinais na barriga, da barriga então nem fala, é fria quando lhe toco, horrível. Estou farta de lhe pedir para levar o lixo e arrumar a máquina da loiça quando acaba de lavar. Se é preciso fazer isso todos os dias, porque é que não interioriza de uma vez por todas as mais elementares tarefas?
Como é que vou conseguir ter esta conversa com ele sem desatar a chorar? Como é que vou explicar aos miúdos que o pai vai sair de casa? E se eu tentasse aguentar isto? Mas para quê? Este casamento já está tão morto há tanto tempo que nem me lembro quando o senti vivo.
Sou desviada das minhas dúvidas existenciais quando o iphone dele começa a apitar e vejo várias mensagens a entrar no WhatsApp. Que estranho, é uma Diana. Pego no iphone mas como não tenho código, só consigo ler a primeira linha . Sempre vens? Estou á tua espera. Pus aquela lingerie vermelha que… e acaba a linha. Despacha-te, já estou toda encharcada só de pensar que vens a caminho, quando chegares quero que me faças… Não te masturbaste ontem, pois não? Quero tudo para mim agora, não te demores senão…
Deixo cair o iphne ao chão. A tipa não sabe que o acento no a é grave. Tirando isso, não lhe apanhei mais erros. Grave é o resto. Grave é ele estar no duche armado em cantor pop e eu aqui a ler as mensagens de uma puta qualquer. Sinto que o tapete debaixo dos meus pés é uma passadeira rolante. O coração dispara, as mãos começam a tremer, depois a pernas, os braços, a boca. A água do duche continua a correr, o mundo continua a girar, nada pára, menos eu, que não sei o que fazer. E agora?
Entro na casa de banho e atiro o iphone para dentro da retrete. O Zé Maria nem percebe o que está a acontecer. Segue os meus gestos pelo vidro, mas nem processa, É tudo demasiado rápido. Eu puxo o autoclismo e olho pra ele sem expressão. Sinto-me um robot, um autómato. Nem sequer sei se vou conseguir articular palavra, o choque só me dá para agir em silêncio. Ele desliga a água e sai todo molhado, com a toalha mal enrolada à cintura.
- Mas tu estás doida? Tu atiraste mesmo o meu telefone para a retrete?
- Quem é a Diana?
- Não é ninguém. Estás parva?
- Só te vou perguntar mais uma vez, quem é a Diana?
- Não é ninguém. É uma estagiária do escritório que é obcecada por mim, uma stalker, estás maluca?
- Ok. É hoje. Vais fazer as malas e vais-te embora. Hoje. Estamos entendidos?
- Mas vou-me embora como? Não estou a aperceber.
- Vais-te embora de cá de casa. Para sempre. Fazes as malas e pões-te a andar, a casa é minha, levas as tuas merdas, menos o telefone, claro, porque já foi para o cano. Compras outro, cabrão.
- Maria, isto não é nada, tu não me podes fazer isto…
- Não, TU é que não me podes fazer isto. Sou mesmo estúpida, devia ter desconfiado. É o clássico: andas a comer gajas por fora e achas que podes manter tudo como está. Mas eu já estou farta de ti, este casamento é uma merda, há muito tempo que é uma merda e não estou para isto, há mais vida.
E há mesmo.
Nessa noite o Zé Maria fez as malas e foi-se embora. Instalou-se num AirB&B perto de casa até encontrar um apartamento. Nunca mais dormiu lá em casa. Nunca mais me largou a porta com o pretexto de ver os miúdos, ir levá-los de manhã à escola, siar com eles para jantar, de repente transformou-se num pai presente, atento, dedicado. Mas eu fechei o meu coração. Na verdade, há muito que estava fechado, só precisava de uma desculpa para o mandar embora. E não existe nenhuma diferença entre uma razão e uma desculpa.