
O Ricardo e eu somos os únicos da turma que não têm os pais divorciados. Foi a professora de português que falou do assunto, depois de uma composição sobre as férias de Verão. Ela constatou, foi o verbo que a estúpida usou, que só nós, entre todos os alunos da aula, vivíamos num lar com pai e mãe na mesma casa. Acho que a expressão foi debaixo do mesmo teto. E disse aquilo com um ar desconfiado, como se fosse uma espécie de doença.
Nunca tinha pensado nisso. A Margarida vive com o pai, nunca me ocorreu que deve ter saudades da mãe que ficou no Porto. No primeiro dia de aulas sentou-se na última fila e não falou com ninguém. Fala muito pouco, nunca mete conversa em responde em monossílabos quando falam com ela. Deve ter vergonha por causa de sotaque. É a miúda mais gira da escola, mas tem o olhar sempre longe, como se quisesse estar noutro lugar. Se calhar queria estar com a mãe. Quem lhe leva leite quente com mel à cama quando fica doente?
As minhas irmãs e eu sempre tivemos a minha mãe por perto, não sei como é crescer com os pais separados, ou com a minha mãe longe. Se calhar é por isso que tem um ar tão triste. E calhar foi por isso que me aproximei dela. O meu pai ensinou-me que um homem deve sempre proteger as mulheres. Ou pelo menos, tentar.
Não foi fácil, porque ela não dava conversa a ninguém, mas ele disse-me para não desistir. Convidei-a para comer ir à Surf comer um gelado, ela recusou. Perguntei se queria vir para Santos, respondeu que não gostava de sair à noite com rapazes. Nas aulas percebi que tinha dificuldade a matemática. Eu sou um ás a matemática. Até já entrei nas Olimpíadas. Nem preciso de me esforçar, aquilo para mim tem sempre solução, quanto mais difícil, mais divertido. Como diz o meu pai, no pain, no gain.
Há três semanas, no intervalo das 11, depois dela ter recebido negativa no teste, enchi-me de coragem e perguntei se queria que a ajudasse.
- Queres dar-me explicações, é isso?
- Sim, se tu quiseres, podemos tentar.
- Não sei se o meu pai vai querer gastar dinheiro.
Fiquei muito espantado com a resposta. Em casa ensinaram-me que ajudar nunca é a troco de nada, muito menos de dinheiro.
- Mas eu nem pensei em cobrar, faço-o por amizade.
- Ah sim? E o que é que queres em troca?
- Nada. Quero só ajudar-te.
- Vou pensar nisso – respondeu, e virou-me as costas.
Não acreditou na minha boa vontade. No dia seguinte perguntei se aceitava a minha proposta. Ela fitou-me como se eu fosse um boneco de neve e eu comecei a derreter. Senti a pernas feitas de geleia e os braços a desencaixarem-se do tronco como se os ombros se partissem. Quanto mais o seu olhar se fixava sem dizer nada, pior me sentia.
- Está bem, vamos a isso. Mas com duas condições: a primeira é que não quero que ninguém na escola saiba, e a segunda é que só pode ser em minha casa, depois do meu pai chegar.
- Se o teu pai chega tarde, os meus não vão deixar. Lá em casa jantamos às oito e meia, esteja ou meu pai ou não. A minha mãe é muito rigorosa com os horários das refeições.
- Então não vamos conseguir…
Quando cheguei a casa pedi ajuda ao meu pai. Gostava da miúda, aquela era a única forma de me aproximar dela.Ele ouviu tudo com muita atenção e disse:
- Amanhã pede-lhe o telefone do pai, vou propor dares as explicações cá em casa e depois eu ou tu vamos levá-la a casa. Mora muito perto, talvez ele deixe. Achas um bom plano?
Eu dei-lhe um abraço cheio de vontade de chorar. Aquele plano era invencível. Na noite seguinte o meu pai ligou. Ouvi-o repetir pelo menos três vezes que as explicações não eram para ser pagas e ganhámos a batalha. A Margarida começou a vir cá a casa duas vezes por semana. Como o Inverno ainda não chegou, vou levá-la a pé a seguir. Parece-me que já está a fazer progressos. É mesmo a miúda mais gira da escola e claro que estou apaixonado por ela, mas ainda ninguém percebeu. Só o meu pai, porque o meu pai sabe sempre tudo.
É mesmo o maior. Quando for grande quero ser igual a ele. E vou ser.