
Chiado, faltam poucos minutos para as 4 da tarde. O frio já se apresenta soba a forma de uma brisa fresca, é desta que o Outono chegou. Parece que vem aí um furacão chamado Leslie. Um furacão em Lisboa é uma coisa tão incomum como macacos nas árvores do Jardim do príncipe Real, mas como já há homens vestidos de Índios perto do arco da Rua Augusta, tudo pode acontecer na cidade descoberta por Ulisses no tempo das epopeias clássicas e pelo mundo inteiro nos últimos anos. Eu ia chegar a São Carlos mesmo em cima da hora, à minha espera tinha um daqueles amigos com lugar cativo, pessoal e intransmissível no meu coração, quando fui apanhada por uma frase.
Passo a vida a ser apanhada por frases, como uma borboleta que se deixa prender nas malhas de uma rede. Quando era miúda e visitava com frequência o Pedro Paixão, que continua a ser dos meus melhores amigos e dos meus escritores preferidos, ele gostava de ir para o jardim da sua casa do Estoril com uma rede apanhar borboletas. Não estou a inventar, era mesmo assim: depois de um dia de escrita, o Pedro gostava de sentar ao piano a tocar, ou então dedicava-se a esse passatempo quase tão original quanto inútil. Não me lembro de alguma vez ter apanhado alguma, nem sequer libelinhas, moscas ou melgas, e agora penso que talvez ele estivesse mais encantado com a ideia de correr atrás das borboletas do que propriamente as caçar.
A frase foi apanhada no ar, como quem de repente vê um cometa a cruzar o céu, numa dessas noites claras depois de uma grande tempestade. Uma mulher na casa dos 40 anos dizia ao telefone a alguém: o Hugo não quer voltar para a Natacha porque ela envenena-o muito. Resisti à tentação de desacelerar o passo e estacionar as pernas em frente à montra mais próxima para continuar a ouvir fatias daquela história. E se aquele bolo fosse tão bom que desse para devorar mais fatias? Há bolos assim. O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo, por exemplo. É tão bom que se torna humanamente impossível comer só uma fatia. O meu amigo estava à espera e é sabido que no teatro, na opera e em concertos de música clássica não dá para entrar atrasado. Imaginei o Hugo com 29 anos, funcionário de uma junta de freguesia e a Natacha, técnica de cor num cabeleireiro de bairro. Ele de boné de pala, barba curta, cabelo rapado, calções a meio da perna e t-shirts expressivas. Ela de cabelos compridos, cacheados como se diz no Brasil, roliça, de nariz arrebitado, mandona e decidida, a filosofar sobre a vida enquanto mistura tons nas tinas com um pincel e um par de luvas para não queimar a pele. Ao fundo do salão, duas mesas de manicure são ocupadas pela Cátia e pela Alana, que são cunhadas. Foi a Cátia que levou a Alana para o salão que é da tia dela. A tia é a mulher de meia-idade que está ao telefone a falar com a outra sócia do salão, a Edite. A Natacha chateou tanto o rapaz, passava a vida a dizer mal dos amigos dele, da família dele, do Benfica dele, o pobre coitado saturou e saltou-lhe a tampa. Acabou tudo num domingo, foi no domingo passado e desde então a Natacha chora para dentro das tinas pretas de plástico onde mistura os tons, está inconsolável. Já lhe pediu para voltar, mas ele fez-se de surdo e ontem já foi visto com a filha mais velha da Dona Licas que tem uma loja de atoalhados na esquina do bairro. Tudo isto se passa entre Santos e a Madragoa, ainda nas festas dos Santos Populares andaram todos a bailar e agora o que vai ser desta rapariga que perdeu o namorado por causa da sua língua cheia de veneno.
Chego ao teatro ofegante, faltam dois minutos para as 4, o meu amigo pergunta:
- Onde é que estás com a cabeça miúda?
- Numa história qualquer que comecei a escrever a caminho daqui.
- É sobre o quê?
- Sobre a vida como ela é.
Nada como respostas vagas para evitar mais perguntas. A cabeça de um escritor é isto; durante a missa solene fiquei a pensar na Natacha mergulhada num pranto ao saber que o Hugo andava a sair com a filha da Dona Licas. Não há direito, fiquei mesmo com pena dela.