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Margarida Rebelo Pinto
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Dias Fáceis

Devemos respeitar a tristeza, mas não devemos alimentá-la, sob o risco de se tornar num monstro. Os monstros ocupam muito espaço, requerem muita atenção, podem virar-se a nós a qualquer momento e impedem-nos de viver a vida sem medo.
12 de outubro de 2018 às 14:35
Margarida Rebelo Pinto, Crónica
Margarida Rebelo Pinto, Crónica

- Às vezes acordo tão triste que só me apetece embrulhar o coração para ninguém o ver.

São onze e meia da manhã, a Cristina veio comigo ao bar beber um café, tem os olhos inchados de quem esteve a chorar, finjo que não reparo porque aprendi no Brasil que não se pode dar confiança à tristeza.

- Acordas assim todos os dias?

- Não. Outras vezes acordo sem o peso da tristeza no peito e sinto-me aliviada porque sei que o dia vai ser fácil.

O que é um dia fácil? Esta é a pergunta que me faço com cada vez mais frequência desde que voltei do Brasil. A minha amiga que acorda com o coração embrulhado só foi uma vez ao Brasil. A América do Sul não lhe fala ao coração como a mim, que me ia casando no Rio de Janeiro a primeira vez que lá fui com 25 anos, e desde então não mais cortei os laços amorosos com a Cidade Maravilhosa, embora nunca mais me tenha voltado a perder de amores. Na verdade, o meu amor é bem mais forte a maior do que uma paixão, por muito intensa que seja. É um amor pela cidade, pela sua gente, pelos poetas e escritores que conheço, pelos atores e músicos com quem convivo, pelas amigas do peito e os amigos do coração, pela praia, pelo Calçadão, pelo Arpoador, pela Lagoa, pelo Parque Laje, pelos pães de queijo e as águas de coco, pela luz e pelo mar, pelo Cristo e pela Pedra Bonita. Todos os dias penso no Rio, que amo tanto como Lisboa e agora que o caos se aproxima, como um comboio que vai descarrilar numa ponte e cair a centenas de metros de altura, ainda penso mais.

Das fáceis são aqueles em que vivemos num regime democrático estável, em segurança, num país que conheceu o fascismo e não tem – assim o espero – memória curta. Dias fáceis têm os europeus que se podem deslocar dentro do seu continente de forma livre. Dias fáceis temos os que aqui vivemos neste jardim à beira-mar plantado que tem golfinhos no Tejo e onde já há condenações por maus-tratos a animais. A Cristina anda inconsolável porque não foi aumentada ente ano, porque queria trocar de carro e não conseguiu, porque o namorado acabou com ela, porque se sente só, porque não o consegue esquecer, porque se aborrece ao fim-de-semana, porque ela a deixou de seguir no Instagram, sei lá que mais razões existirão para a tristeza endémica da Cristina que já se lhe colou aos braços, pernas e nervos. Devemos respeitar a tristeza, mas não devemos alimentá-la, sob o risco de se tornar num monstro. Os monstros ocupam muito espaço, requerem muita atenção, podem virar-se a nós a qualquer momento e impedem-nos de viver a vida sem medo.

Tento animá-la desviando o assunto para o que se passa no mundo: as emissões de carbono, as loucuras do Trump e a escalada do Bolsonaro no Brasil, mas a minha amiga não entra na conversa. Parece que se desligou da realidade. Parece que a tristeza torna as pessoas egoístas e como a infelicidade pode tornar as pessoas más. Não no caso da Cristina que tem coração de manteiga, mas em tantas almas zangadas com a vida e com o mundo que acabam por mostrar o seu lado monstruoso. No Brasil tenho amigos que perderam quase todos os amigos por doença ou crime, conheço pessoas que crescerem em favelas, que foram violadas por familiares, que passaram fome, que passam dificuldades, que foram assaltados, nunca vi ninguém a chorar. Os brasileiros não dão confiança à tristeza, mesmo que o sofrimento lhe inunde a carne e o espírito, a casa e a vida.

O que é um dia difícil? É sair à rua e ver o corpo do dono da drogaria a ser tapado com um cobertor porque houve um assalto. É saber que existe uma onda de raiva contra quem é gay. É sentir que o perigo espreita e que os bandidos tanto descem do morro como estão sentados no Senado. Uma vida difícil é uma vida sem segurança nem possibilidade de construir o futuro. É uma vida de sobrevivência.

É claro que um desgosto de amor nos pode tirar horas de sono, provocar dores de barriga e fazer saltar algumas lágrimas de raiva. Mas isso não é uma vida difícil. É só um momento chato numa vida que, comparada com a que se vive no país irmão, é afinal muito fácil.

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