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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

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Borboletas, procuram-se

O que é um escritor sem memória? É como um maratonista sem pernas para correr.
19 de abril de 2019 às 08:00
borboletas, flores, natureza, verão, primavera
borboletas, flores, natureza, verão, primavera

Já passaram mais de 100 dias desde o início do ano e nem uma borboleta visitou o meu jardim. Tenho merlos, rolas, andorinhas, tenho bandos de papagaios que cruzam o céu de manhã para oeste e à tarde para leste, tenho um gato gordo e intrometido que acha natural explorar as minhas flores, a trepadeira de jasmim já está a florir e não tarda o meu jacarandá vai cobrir-se daquela tom maravilhoso que no fim do Verão irá forrar a relva a roxo clarinho e poesia, mas borboletas, não.

Eu acho que foste tu que me levaste as borboletas, porque antes de te conhecer eu via muitas aqui no jardim e mesmo em casa. Entravam aos pares, provavelmente em êxtase amoroso, como é próprio dos seres vivos em época de Primavera, e cada vez que as via, punha-me a pensar porque é que as pessoas são capazes de matar os animais para os meter em frascos, em molduras de vidro, ou ainda embalsamados por taxidermistas. Por mais que tente, o meu entendimento não alcança nenhum tipo de prática necrófaga, talvez por ter crescido com o pesadelo recorrente da lenda de Dom Pedro que terá obrigado a Corte a beijar a mão de sua linda Inês já feita cadáver. A investigação histórica aponta para a invenção de um mito, faz parte da lista de mitos nacionais, tal como o milagre das rosas da avó de Dom Pedro, a Rainha Santa Isabel, que afinal copiou a ideia anteriormente usada em França. A ideia de alguém desenterrar um cadáver e obrigar outras pessoas à exposição do mesmo á suscetível de causar náuseas e arrepios a qualquer ser humano com coração e estômago, pelo que animais mortos e expostos em salas para gáudio alheio também me deixa bastante incomodada.

As borboletas querem-se vivas e soltas, a namorar aos pares e a brincar nas flores, tal como as abelhas, as aves e tudo o que voa. Uma borboleta morta, presa com alfinetes dentro de uma caixa de vidro é mais triste do que um amor que já morreu, porque um amor que já morreu, com o tempo será esquecido. Talvez nunca seja apagado, pois é sabido que as células do corpo humano têm memória e que essa memória dura sete anos. Se fizermos as contas aos dez triliões que cada um de nós carrega para ser pessoa, é fácil perceber que há coisas que nunca conseguiremos apagar. Mas esquecer é também uma forma de sobrevivência. Daqui a três anos já não te lembrarás de todas as alcunhas que te assentavam como uma luva. Talvez ainda recordes as minhas gargalhadas cheias ou o cheiro da minha pele, o toque suave das nossas bocas quando dávamos os melhores beijos do mundo, mas esquecerás as conversas, as zangas, as saudades, tudo isso se irá diluir com o tempo e com a vida.

Esquecer não é nem nunca foi um verbo fácil de conjugar. Consigo praticar com regularidade e leveza os verbos ouvir, aceitar, aprender, perdoar, relevar, ironizar, rir de tudo o que é tão sério que nos entristece, mas esquecer? Um escritor que se preze tem coração de girafa e memória de elefante. O coração de girafa é dos maiores do mundo e serve para guardar o mundo la dentro e a memória de elefante serve ao trabalho do escritor. É a Madalena do Proust, as migalhas no caminho de João e de Margarida, as falas manhosas do Lobo para o Capuchinho, a abóbora feita carruagem de Cinderela, o fuso malvado da Bela Adormecida, o burro do Shrek, são as tranças de Rapunzel. O que é um escritor sem memória? É como um maratonista sem pernas para correr. Sem memória nem vontade férrea, o escritor perde o fio à meada e é esse fio que o liberta do labirinto. A nossa memória é o fio de Ariadne, que nos guia até ao passado para a reconstrução do presente.

Espero que, até ao final do Verão, as borboletas regressem ao meu jardim. Não me resta mais nada senão desejar com todas as minhas células que isso aconteça. E tenho a certeza que, se for bom para mim e o melhor para o mundo, numa destas manhãs de sol, irão entrar pela janela uma quantas, distraídas e estouvadas, com asas de muitas cores e antenas penteadas, para trazerem alegria e paz ao meu coração de escritora que ainda acredita nos poderes mágicos da Rapunzel e de outras heroínas deste e de outros mundos.

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