
Marlon Brando, filho de Marlon Brando Sénior e de Dotty, era um rapazinho bonito, mimado pela mãe e pelas duas irmãs mais velhas, que cresceu a ver o pai a bater na mãe e a mãe a afogar-se no álcool. Os vizinhos da quinta onde viviam contavam que quando era criança resgatava a mãe dos bares para a levar para casa e tinha o hábito de vaguear pelos campos imitando os sons dos animais, enquanto a mãe ressacava. Dotty era uma atriz amadora talentosa, separou-se do pai quando ele tinha 11 anos, voltando mais tarde a reconciliar-se.
Os atores e a crítica consideram-no o maior ator de todos os tempos e no entanto, não decorava as falas. Improvisava sempre que lhe apetecia e fazia pausas, supostamente dramáticas, para ler as cartolinas gigantes posicionadas ao lado da câmara. Foi assim que se criou o mito do olhar misterioso de Brando. Era incrivelmente bonito, bem constituído e tinha um carisma que nenhum ator conseguiu igualar. A sua forma de representar era perfeita; não só conseguia transmitir todas as emoções, como criar na audiência as mesmas emoções: raiva, alegria, tristeza, desejo, desprezo, paixão, medo, desespero.
Marlon era um excessivo em tudo: o seu apetite sexual atraía mulheres e homens e ele fazia tudo o que lhe apetecia com todos. Descartou Sophia Loren alegando que a diva italiana tinha hálito de dragão e Liz Taylor por ter um rabo demasiado pequeno. Envolveu-se com Marylin com quem teve um caso intermitente durante anos e talvez com Jackie Kennedy. Teve aventuras com James Dean, Cary Grant, Rock Hudson e Lawrence Olivier. No fundo era uma grande peste, irresistível, mal-educado, briguento, caprichoso e imprevisível. Adorava junk-food e manteiga de amendoim que comia diretamente do boião. Casou três vezes e teve 11 filhos, dentro e fora dos casamentos, manteve uma relação longa com a governanta e partiu o queixo a vários paparazzi.
A cena que me fez quebrar o mito e aceitar que Marlon Brando era de facto um monstro é lendária. Em 'O Último Tango em Paris', a simulação de violação de Maria Schneider é de uma violência abjeta que impressiona até as almas mais empedernidas. Trata-se uma humilhação sexual que ficou para sempre para manchar a história do cinema, um símbolo impossível de apagar do que é a violência sexual. Quando a cena foi filmada, Brandon disse a Maria que era apenas um filme e quando terminou, nem sequer a confortou. Bertolucci, o realizador, autor moral deste horror, passou impune em todo o processo e só no final da sua vida foi condenado pela opinião pública.
A combinação de beleza e pujança física com o talento, o carisma e a crueldade, criaram um mito eterno que lembra os criminosos Bonnie e Clyde, lendas populares nos Estados Unidos, embora fossem assassinos sanguinários e cruéis de dezenas de inocentes e faz-me pensar no poder ilusório e enganador de uma imagem.
De que serve a beleza e o talento se o caráter é duvidoso ou mau? Uma imagem vale assim tanto que nos desvie da realidade? Nunca acreditei que existissem pessoas totalmente boas ou completamente más, mas a observação continuada e empírica da condição humana ensinou-me a separar os fortes de caráter dos fracos, os sérios dos mentirosos, os empáticos dos egoístas, os confiáveis dos pantomineiros, os homens que respeitam as mulheres e os que não as respeitam. Por vezes, ao idolatrarmos uma paixão ou um mito, perdemos o sentido crítico perante o nosso objeto amoroso. Está cientificamente provado que a produção de oxitocina inibe a perceção de atos de infidelidade no nosso parceiro. Quando queremos ver o melhor no outro, o nosso cérebro usa mecanismos para nos deixarmos enganar. A natureza humana é afinal, tão traiçoeira como a própria condição humana. Seria bom parar um pouco e pensar sobre as armadilhas químicas do coração, porque o amor nunca salvou ninguém de mau caráter. O caráter está em nós, não se adquire como um par de sapatos italiano. O maior ator de todos os tempos era uma peste. Temos pena, mas era. E nem o seu talento e beleza o salvam da galeria imortal dos malditos.