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Margarida Rebelo Pinto
Margarida Rebelo Pinto Pessoas Como Nós

Notícia

Hoje já é outro dia

Às vezes basta uma frase fora de contexto, uma palavra empregue em tom inadequado e puf! lá se vai a magia toda.
22 de março de 2019 às 20:27
casal, cinema, filme, sala de cinema
casal, cinema, filme, sala de cinema Foto: D.R.

Andamos sempre à procura de explicações para tudo, como se a existência se resumisse a punhado de soluções baseadas na lógica, na aritmética ou em qualquer ciência mais ou menos exata.

Crescemos com regras e horários: primeiro a hora de acordar, das refeições, a hora do banho e de ir para a cama, depois a hora de entrar na escola e de fazer os trabalhos de casa, o momento de escolher um curso, de conquistar um diploma, de arranjar um emprego, de fazer aquilo que o mundo espera de nós e que tem basicamente a ver com crescer. Os anos vão passando e quando damos por isso, já fizemos as coisas mais importantes que os outros esperam de nós e muitas vezes ainda não temos a mínima ideia do que é que realmente queremos para nós.

Mergulhei neste tipo de reflexões para não pensar porque é que depois de tudo o que se passou entre mim e o Filipe, ele não voltou a procurar-me. Não percebo o que é que possa ter dito ou feito de errado, porque nem sequer houve tempo para isso. Ou se calhar não é bem assim. Se calhar, para fazer as coisas mal há sempre tempo, às vezes basta uma frase fora de contexto, uma palavra empregue em tom inadequado, um gesto extemporâneo e puf! lá se vai a magia toda.

Há imensas maneiras de escrever a palavra Fim. Por exemplo, nos filmes antigos, havia fins escritos na madeira, na pedra, no gelo, nas nuvens. Havia nessa época uma variante interessante que era O Fim. A utilização do pronome definido servia para explicar que o fim em questão era apenas aquele fim, e não outro qualquer. Que, depois de cair o pano, a vida continuava cá fora, só aquilo é que acabava. Agora o espectador intui pela lógica (outra vez a lógica) da última cena – geralmente a cena em que se mostra que está tudo bem depois da grande e derradeira cena onde a história se resolve – ou então, caso se trate de um realizador de linha alternativa, leva com o ecrã negro como uma chapada na cara, seguido dos créditos finais.

Quando íamos ao cinema, gostávamos de ficar sempre até ao fim, que é depois do fim, quando o genérico finalmente acaba e as luzes se acendem. Esperávamos que a sala se esvaziasse para fintar os inevitáveis olhares de reconhecimento que sempre o cercavam em qualquer espaço público, facto com o qual lidava com uma quase indiferença. Parecia nunca se impacientar com nada, até porque, segundo palavras do próprio, era-lhe era difícil regressar ao mundo real. Para quem não é?

Talvez para o Filipe isso constituísse mesmo um problema, parece que os atores sofrem todos da mesma doença, com os anos já não conseguem viver plenamente sem ser dentro dos personagens que estão a interpretar - e se calhar é por isso que não me procurou e decidiu interromper, suspender, congelar ou simplesmente rebentar com aquilo que ele achava que era a relação que ele sempre quis com uma pessoa muito especial, como ele costumava dizer. Como também me costumava telefonar todos os dias só para dizer que gostava muito muito muito muito de mim. Como se cada muito carregasse o muito anterior, como se não lhe chegasse a qualidade do amor que sentia e fosse buscar à quantidade um reforço de segurança. E eu acreditei, provavelmente porque era verdade. Ou pelo menos porque sentia que era verdade e porque aprendi há muitos anos que verdade é o que se sente.

O que ainda não consegui aceitar é que a verdade hoje pode ser mentira amanhã, nada é eterno. A não ser o tempo. Tudo muda, todos os dias caem do nosso corpo células mortas, de forma que ao fim de alguns anos já não somos a mesma pessoa, apesar do espelho nos mostrar uma cara semelhante ao que já fomos iludindo-nos assim da mudança inevitável e por vezes destruidora.

O Filipe não vai voltar. Despareceu ao estilo de todos os cobardes, sem aviso prévio, como o meu tio Licas há 20 anos, que disse à minha tia Isabelinha que ia comprar cigarros e já nunca mais voltou. Depois do seu desaparecimento, a tia Isabel descobriu que ele levara as melhores roupas, todos os discos do Chico Buarque e o dinheiro da conta conjunta. Nunca mais foi a mesma pessoa, viveu alienada, afogada na crença que o marido iria voltar. Envelheceu depressa e um cancro levou-a num instante.

Não quero essa triste vida e ainda menos tão desoladora morte. Apago o número do Filipe e todas as mensagens. Tenho de ser mais forte do que a tristeza. Amanhã é outro dia. Não, hoje já é outro dia. Vou vencer este fim, seja ele de que matéria for. Só tenho de esperar que o genérico termine e as luzes se acendam para sair da sala.

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