
O assassinato hediondo de Jéssica, cuja vida pagou quatrocentos euros, em dívida, de um serviço de bruxaria colocou o País em estremecimento. Diria mesmo indignado. Porém, por aquilo que se viu e ouviu, da base ao topo das pirâmides social e política, são poucos aqueles que compreenderam a dimensão da tragédia que, de rompante, nos esmurrou como se nos quisesse despertar para o Portugal que vegeta, e sobrevive, sob o queirosiano manto diáfano da fantasia com que, dia após dia, lhe é mostrado. É certo que a morte da inditosa menina não tem valor estatístico. São poucos os casos iguais ou semelhantes. Numa década contar-se-ão pelos dedos das mãos crimes contra crianças cometidos pelos pais ou por quem tinha o dever especial de cuidar. Porém, neste acontecimento concreto – que não se esgota no psicodrama criminoso – desnudou uma pontinha daquilo que somos, enquanto País que não se consegue libertar dos seus instintos medievais. Das suas velhas crenças, dos antigos medos, do conservadorismo atroz, na ignorância mais brutal, que não se liberta deste lodo pútrido e pegajoso que nos coloca irremediavelmente entre os países mais atrasados da Europa.
Ao contrário do que quiseram fazer crer os chefes políticos este não é apenas um caso de miséria moral. É a forma mais airosa de se escapar como Pôncio Pilatos, de escamotear o sucedido. Não é apenas um caso em que uma mãe sufocada na sua própria miséria, se demite dos seus deveres maternais. Não é só a arruaça vingadora que envolveu o funeral com dezenas de mulheres a pedir a morte dela. Nem as costumadas desculpas de que a Proteção de Menores e o Ministério Público sabiam e nada fizeram. Não é só o motivo fútil que motivou o homicídio da malograda Jéssica. Nem a brutalidade da sua execução.
Para lá das lantejoulas que fazem o espetáculo televisivo dos pobres, para lá dos discursos vazios sobre o Portugal progressista e avançado, veio ao nosso encontro um pedaço da realidade que continua influente, bem viva, resistente à mudança, suportada na crença e na superstição. Um pedaço de um imenso território dominado por bruxas, feiticeiros, videntes, donos de uma verdade milenar que nos torna joguetes dos caprichos ocultos de Deus e do Diabo. Neste território imenso não entra a modernidade, nem a contemporaneidade. É este caldo cultural terrível, pré-Inquisição, que escorre pelas veias mais profundas da nossa gente, onde a ignorância é rainha e sobrevivência não tem tempo para o amor. Não fomos capazes de vencer a História.