
A história da democracia portuguesa é indissociável da história da luta contra a corrupção. Desde logo, nos primeiros documentos públicos do Movimento das Forças Armadas surgiu, desde logo, como imperativo para semear o regime democrático. A preocupação com este funesto evento era tal que o combate começou por ter uma entidade autónoma que não se submetia a qualquer polícia. Chamava-se Alta Autoridade Contra a Corrupção e foi dirigida por um dos mais brilhantes oficiais do MFA, o coronel Costa Brás.
Este Alto Comissariado durou cerca de dez anos. Embora não tivesse função punitiva, limitava-se a recolher informação sobre eventuais práticas corruptivas, a evolução económico-social, assim como as sucessivas alterações ao crime da corrupção, retiraram-lhe eficácia e a partir de 1992 a Polícia Judiciária integrou este crime no conjunto de crimes, genericamente conhecidos por Infrações Económico-Financeiras. Por ignorância, pela economia verbal, rapidamente se confundiu esse crime com outros crimes da mesma área, nomeadamente o peculato, as burlas, os abusos de confiança, remetendo ao nível da linguagem popular qualquer infração económico-financeira para a designação genérica de corrupção.
Tal confusão, alimentada pela classe política e amplificada pelo jornalismo justicialista, adulterou o entendimento jurídico-penal a um ponto tão extremo que, nos dias que hoje correm, deixou de ser a tipificação de um crime para se tornar num labéu que mancha, sem apelo nem agravo, o caráter de qualquer servidor do Estado desfazendo carreiras, destruindo vidas, numa confusão tal de juízos que leva a que o principal responsável do Chega a afirmar que é necessário mudar o sistema porque, nas finalidades últimas toda a administração pública vive num limbo de desconfiança que rapidamente descamba em práticas corruptivas.
Ora esta generalização, acompanhada por juízos éticos e morais sobre factos que precisam de investigação para se medir a possível motivação criminal, coloca na mesma gamela de sopa factos, suspeitas, insinuações, má-língua, tornando-se num verdadeiro caldo aquilo que é corrupção daquilo que não é. Não admira, pois, que a esmagadora maioria das participações e denuncias de putativos crimes vá quase diretamente para o cesto do lixo, não suportando a mais simples das questões sobre a natureza criminal da denúncia.
Tudo indica, perdido o bom senso e a exigência de uma cultura de rigor, que a próxima campanha eleitoral se torne numa verdadeira chafurdice onde não é necessário provar nada daquilo que se afirma. Não fica apenas mal a quem profere juízos pantanosos. Também fica mal a quem os leva a sério.