
A turbulência que, neste momento, agita Espanha merece atenção e alguma preocupação. Quem conhece a história recente dos nossos vizinhos tem um olhar menos imediatista sobre as vagas de manifestações que estão a acontecer e do radicalismo exacerbado, a raiar o ódio que se apossou da política. A amnistia aos independentistas da Catalunha é, na minha opinião, um pretexto. Está bem longe da grande amnistia de 1977 que procurou apaziguar a Espanha das feridas deixadas pelo franquismo. Esta paixão violenta que agora vemos, é, sobretudo, o reavivar de memórias.
Os últimos cem anos de Espanha foram construídos sobre um rasto de sangue. Desde a terrível Guerra Civil. Foi um acontecimento traumático onde soçobraram cerca de 400 mil espanhóis. Após o seu fim, o franquismo executou mais de 100 mil pessoas e, ainda durante a ditadura até 2011, o movimento separatista ETA assassinou cerca de 900 vítimas. Passaram apenas 12 anos desde que a organização terrorista depôs as armas e enveredou, apenas, pela luta política. O movimento independentista da Catalunha, aspiração com séculos de História, se nos recordarmos que a revolta dos catalães foi decisiva para que, em 1640, Portugal conseguisse restaurar a monarquia dos Bragança, não está associado à violência na Espanha democrática. Porém, é produtora de fantasmas e medos, o primeiro dos quais é a fragmentação do Estado espanhol.
Na verdade, o que esta amnistia que deu maioria a Sanchez traz à superfície é o luto, o sofrimento, as mágoas não resolvidas pela violência. Espanha continua impregnada pelo sangue das vítimas e a revolta a que assistimos fala mais desses mortos, de tantos mortos, do que propriamente da legalidade da amnistia de que vão ser alvo os independentistas catalães.
A sede de poder a qualquer preço abriu feridas profundas que mostram a decadência e degradação da política. O esboço de rebelião de polícias e de magistrados que se desenha para um futuro próximo não augura nada de bom. A revolta popular está a incendiar as populações. Em nome dos mortos. Do sofrimento acumulado e, ainda não esquecido. A paz, que se reclama para outros lugares do mundo, é urgente, é fundamental que seja a matriz que une todos os espanhóis.