Quem tramou Ljubomir Stanisic? O raro e complexo processo da queda de uma Estrela Michelin
No passado, assume que quase viveu para esta conquista: gastou milhares em copos de cristal e toalhas de goma para chegar aos padrões de qualidade que o levariam a conquistar a Estrela Michelin... que agora lhe fugiu das mãos. Mas como é que se perde a maior distinção do segmento? O caso não é inédito, mas envolve um sem número de passos e as razões só são comunicadas ao próprio chef. Entenda o que aconteceu com o restaurante 100 Maneiras.A edição deste ano do Guia Michelin trouxe motivos de celebração, como o triunfo de Marlene Vieira como uma das chefs do momento, mas também alguns dissabores, sendo que a surpresa foi geral quando se soube que Ljubomir Stanisic tinha perdido a estrela pelo seu restaurante 100 Maneiras. O bósnio já sabia de antemão que a distinção lhe iria fugir das mãos e não marcou presença na famosa cerimónia, que decorreu no Edifício da Alfândega do Porto. "O nosso objetivo não são os prémios, sendo somente um reconhecimento do trabalho feito diariamente. E este ano, como nos outros anos, foi feito muito trabalho e muito investimento de todos os que integram o projeto 100 Maneiras. Foi – e está a ser – um ano particularmente difícil para a restauração em Portugal. Por isso, foi uma surpresa e uma notícia menos boa no meio de outras bem piores, como o fecho de muitos restaurantes", reagiu o famoso chef do programa da SIC 'Hell's Kitchen', depois de receber a notícia.
A verdade é que o facto de perder a Estrela representa um duro revés, uma vez que a distinção da Michelin é sinal de prestígio e é vista como uma montra para o espaço, resultando muitas vezes num aumento das receitas e da procura em torno do restaurante, até mesmo para os muitos turistas que visitam Portugal e que recorrem à famosa cábula do guia como um barómetro de qualidade.
O caso de Ljubo não é inédito, ainda que seja muito mais raro perder uma Estrela Michelin do que conquistar uma nova, sendo que este ano apenas Stanisic viu o galardão fugir-lhe das mãos, enquanto oito novos espaços entraram na lista. E, acima de tudo, não são tornadas públicas as razões pelas quais estes restaurantes deixam de constar nos Guias Michelin. Segundo os responsáveis, estas apenas são transmitidas ao chef, depois de um moroso processo que passa por várias etapas e envolve a opinião de diversos especialistas, para não criar situações que possam redundar numa injustiça.
Em França, por exemplo, quando em 2023, Guy Savoy, considerado então o 'chef mais famoso do mundo', perdeu uma Estrela Michelin, o diretor do famoso guia reuniu-se pessoalmente com ele antes de que a decisão fosse anunciada ao mundo.
"Esses são restaurantes excepcionais, por isso, como podem imaginar, essas decisões são cuidadosamente consideradas, apoiadas por numerosas visitas dos nossos inspetores ao longo do ano. Para decisões tão importantes, contamos não só com inspetores franceses, mas também com alguns de outros países”, afirmou Gwendal Poullennec, o diretor do guia, para desmistificar um pouco os passos que têm de ser dados até um restaurante perder a sua Estrela, o que pode estar assente num sem número de fatores: instabilidade e mudanças na cozinha, quebra de qualidade dos produtos usados, questões de higiene, pouco foco na inovação, inconsistência no serviço ou ainda outros fatores externos, num barómetro que envolve tantos parâmetros que é impossível determinar ao certo o que mais pode ajudar à queda. Até esse momento, são feitas diversas visitas ao restaurante em diferentes momentos e pede-se a intervenção de mais especialistas, pelo impacto negativo que a decisão poderá ter no futuro do espaço.
No caso de Ljubomir, há quem diga que a fama conquistada no programa da SIC em vez de o ajudar, prejudicou-o no seu estatuto de chef, com muitas vezes o preconceito a imperar em relação ao papel que o bósnio desempenha no formato. Mesmo entre os colegas, nem sempre Ljubo goza da melhor reputação. Dizem que o programa não espelha a realidade do que se passa nas cozinhas portuguesas e que o tom rude com que muitas vezes lida com os concorrentes é, na verdade, uma falta de respeito, sendo que Stanisic segue uma espécie de um guião de um programa que é copiado do sucesso de outros países.
Certo é que este aspeto mais popular de um chef que, de repente, se transforma numa estrela de televisão nem sempre é encarado de forma harmoniosa pelos seus pares. E lá fora, por exemplo, o mesmo chegou a acontecer com o famoso cozinheiro Gordon Ramsey. No entanto, ao contrário do que aconteceu com Ljubomir, o britânico não desvalorizou o momento e desabou em lágrimas no ano em que perdeu não uma, mas duas Estrelas Michelin. "Desatei a chorar quando perdi as minhas estrelas, é uma coisa muito emocional para qualquer chef, é como perder uma namorada. Tu queres que ela volte. É como perder a Champions League. Mas claro que há sempre o ano seguinte, por isso não é um assunto encerrado. Quero tê-las de volta e é bom ter um foco", revelou, sendo hoje um dos chefs com mais estrelas do mundo: 16.
Ramsey revela-se um fã do famoso guia, que considera não ter perdido os seus padrões de qualidade ou justiça porque, ao contrário do que acontece com revistas e sites da especialidade, em que pode haver uma certa "promiscuidade" nas relações que se estabelecem, que são muito vistas como jogos de favores&prestígio, no caso dos investigadores do Guia Michelin, a discrição é tanta que nunca ninguém sabe quando estes estão a avaliar o espaço, confundindo-se com os clientes do restaurante e aparecendo num regime de total anonimato.
O mesmo acontece em relação ao seu estatuto. "Muitas vezes questionam-me: está em programas de televisão, faz tudo e mais alguma coisa, como é que consegue manter as Estrelas e a qualidade. E eu digo sempre, as Estrelas são do restaurante, não são do chef. O serviço é que as determina", explicou, acrescentando, no entanto, já ter passado por tantos momentos, bons e maus, que não vive obcecado com esta distinção. "Cozinho para os meus clientes, não para o Guia."
Para Ljubomir não será certamente o fim de nada, até porque o chef está habituado a batalhas muito mais difíceis, com a sua história a falar por si. Quando abriu o primeiro 100 Maneiras, em Cascais, ao lado de José Avillez, os feitios incompatíveis dos dois fizeram com que o restaurante encerrasse apenas oito meses depois. "Foi um abanão muito grande na minha vida, como quando perdes um ser querido ao teu lado; foi quase um funeral", disse Ljubo, acrescentando que essa foi uma altura particularmente difícil da sua vida. "Perdi 90% dos amigos. Quando estamos bem e temos dinheiro toda a gente é nossa amiga, mas quando estamos sentados num lago de m**** a nadar até ao nariz, raramente alguém entra lá de joelhos e te dá a mão para te tirar dela."
Atolado em dívidas, na altura o chef teve o primeiro aviso de que a Estrela não era tudo na sua vida, até porque contribuiu e muito para a sua ruína financeira, com Ljubomir a revelar que investiu milhares em "copos de cristal e toalhas com goma" para chegar aos padrões exigidos, o que, em conjunto com outros fatores, o levaram a acumular uma dívida de meio milhão de euros. "Foram dívidas que tive de pagar durante seis ou sete anos, mas saldei tudo", confidenciou.
Hoje, o estatuto de estrela de televisão permite-lhe um novo fôlego financeiro, ainda que outras questões o assolem: será esse estrelato incompatível com o brilho de uma Estrela Michelin?