
Sentou-se com o gato ao colo, afagou-lhe levemente o pêlo.
Sorriu.
À frente, o céu nublado a entrar pela janela, toda a vida a passar pelos corredores de mágoas que são as ruas.
Teve o sonho ali, à mão, e deixou-o escorregar como o tempo nos faz escorregar a vida. Foi o melhor homem para o lugar há dois meses e agora tinha sido escorraçado como um cão que ninguém quer.
Sorriu.
Só podia sorrir perante o fim de tudo o que julgara ser o seu futuro.
(o que se pode fazer perante um futuro que se perde senão sorrir?)
O gato olhava-o de soslaio, desconfiado. Até os gatos reconhecem um falhado, pensou. A tristeza deve ter um cheiro, uma textura.
O fim também.
Não sabe como, mas aconteceu. À frente já não havia o céu nublado a entrar pela janela, apenas um tubo a entrar pelo nariz.
Um homem de bata azul dizia-lhe, quase de dedo em riste, como que lhe explicando como se vive para sobreviver.
(quão triste será uma vida que se limita a sobreviver?)
A frase, como sentença final, entrava-lhe pela corrente sanguínea como cicuta.
Para a próxima tenho de deixar de ter cuidado, corrigiu, sem falar. Fosse mais audaz e ainda seria o futuro que teve tudo para ser. Ainda teria o emprego de sonho, sim; mas o que mais lhe interessava, nesse futuro, era ainda ter a mulher que o faria superar tudo, até a ausência de outro futuro.
(o que é o amor senão aquilo que seja qual for o nosso futuro nos garante a existência de um futuro em nós?)
Teve alta poucas horas depois e sentiu-se capaz de mudar tudo. Pensou em ir buscá-la ao fim do mundo, pensou em resgatar o emprego com base numa argumentação que pelo caminho ia congeminando. Sentia-se indestrutível: imortal. Mas o condutor do carro que se aproximava dele na passadeira também.
(o que é mais irónico do que tudo estar a nosso favor menos a vida?)
Roubo: s.m. O mesmo que morte. Só quando estás a acabar é que percebes verdadeiramente porque não querias, afinal, acabar.