
(ela)
Anda descalça junto à praia e pede perdão por ser gente.
"Um dia canso-me disto e começo a respeitar as regras, mas até lá divirto-me, que se foda."
Lá vai ela, os pés na areia molhada, o mar revoltado a bater-lhe forte, como se lhe dissesse que está ali para a ver, só para a ver andar assim, como só ela consegue andar.
O amor é a capacidade de, por mais que nos queiram calçar sapatos que não são nossos, preferirmos andar descalços do que com calçado que não nos serve.
(ele)
Assinou o divórcio há uma hora, talvez menos, e resolveu caminhar pelo passadiço.
Só para pensar na vida que já não tem e que já não voltará a ter, na vida que sonhou viver e que nunca viverá, na mulher que quis que fosse para sempre e que será para sempre — mas longe de si.
O amor é a capacidade de sermos para sempre de alguém mesmo que nunca sejamos mesmo de alguém.
(o mar)
Chegou uma onda que os uniu.
Para quem viu não foi nada disso que aconteceu: foi apenas uma onda terrível, gigante, que a puxou para o mar e que a quis levar para longe, para o mais longe que alguém pode chegar, naquilo a que muitos chamam morte.
Quis o destino — e o divórcio dele, e a tristeza dele, juntamente com a loucura tão especial dela, claro — que ele estivesse a passar ali naquele momento, tão triste que pensou nada ter a perder ao atirar-se como um maluco à água para salvar uma estranha que andava ali como se fosse Verão.
A sorte levou-os na maré para um canto da praia, junto a uma rocha, onde ninguém os podia ver. O resto não se pode contar, porque parecendo que não pode haver crianças a ler isto.
O amor é a capacidade de nos atirarmos como loucos para tudo o que nos possa fazer um bem maluco.
E só o amor nos deixa malucos da cabeça, haja saúde.
Repulsa: s.f. O contrário de amor; ama-se para combater o que não é amor. E nada é menos amor do que aquilo — e aquele — que é feito de rancor.