
Só aquilo em que reparamos nos pode reparar.
A vida é aquilo em que se toca, pouco mais. O que se toca não é, nunca é, apenas aquilo em que a pele toca; o que se toca é aquilo que nos toca, que nos revolve por dentro, que nos ensina a sentir. A experiência serve para isso: para sentir melhor – e para ficar imune ao que não deve ser sentido. Concretizando: ao que não tem sentido. Ser pessoa é reparar: ter a coragem de reparar. O resto é bosta. Passar pela vida sem reparar nela é um mal sem reparo possível. Sobrevive-se a tudo menos à ausência de algo para ser salvo. Salva-nos aquilo que podemos salvar, como se nascêssemos ao contrário: temos um mundo todo destruído para consertar e é para isso que aqui estamos: para, dia a dia, consertarmos isto e depois aquilo, e depois aqueloutro, até fazer com que o nosso planeta - o espaço recôndito que habitamos – se torne menos insuportável. O que nos suporta é o que não conseguimos suportar – e que por isso reparamos. Sem medo. Melhor: cagados de medo mas cheios de coragem – até porque não existe um sem o outro. Somos o medo que sentimos, sim; mas somos, mais ainda, o medo que superamos. Nada é pior do que não ter um medo para superar. Procura, incansavelmente, algo que te faça tremer. Quem nunca tremeu nunca existiu. Existir é duvidar, disso não tenho dúvidas.
Servem de pouco ou nada as palavras quando o outro lado está surdo.
Antes de pensares sobre o que dizer, pensa bem em quem o vai ouvir. É esse o percurso – e não o inverso: entender quem te vai ouvir e só depois arrancar para o que queres que ele ouça. Comunicar é de lá para cá: de quem ouve para quem diz. É quem ouve, e não quem diz, que decide o que é dito. Sensibilidade, cumplicidade, ligação é isso, sobretudo isso: entender quem nos ouve e usar a linguagem que quem ouve consegue descodificar. Há que decifrar para amar bem. O amor feliz é o amor que sabe olhar, pensar, hesitar, às vezes até desistir, antes de falar. Há quem mate um amor por palavras a mais, há quem mate um amor por palavras a menos – e no fundo é tudo a mesma coisa: os amores morrem, muitas vezes, por incapacidade de ambos os lados de ouvir o outro. E, por mais que pareça o contrário, a culpa não é de quem não ouve; é de quem não se soube fazer ouvir. Há uma surdez dupla quando um amor termina. Uma vez é por falta de amor, é facto; mas outras vezes é apenas por falta de inteligência. Não sejas burro.
É na maneira como se dedica ao mais fácil que se vê a grandeza de um humano.
Os actos mais heróicos não aparecem nos livros de história. Nos livros de História não estão, sequer, os actos que mudaram. Estão, na melhor das hipóteses, os actos mais vaidosos do mundo. O que realmente altera a face da terra é o mundo miudinho, o mundo que só se vê com microscópio – ou com emoção (e são em absoluto o mesmo: a emoção é ver com microscópio). O que altera o mundo é a pessoa que és quando encontras a pessoa que o outro é. Somos a soma inexacta (até abstracta) dos gestos mais pequenos que somos capazes de fazer – e mais ainda dos que somos capazes de evitar. Qualquer um consegue fazer o que tem de ser feito; mas são raros – e mudam o mundo – os que são capazes de não fazer o que não tem de ser feito. Divulgar os teus feitos não é iluminar o mundo – e até nem é, vê lá tu, tapar o sol com uma peneira. É, fixa bem isto, tapar o sol com peneiras. Nenhum vaidoso sabe amar – só sabe amar-se (e acontece precisar de outros para se poder amar melhor).
História: s.f. Aquilo que fica do que nunca existiu; só o que não foi amado deixa de existir.