
Escrevo-te com a caneta que me ofereceste.
Está intacta, limpa, brilhante, e no que ela espelha ainda vejo o teu rosto quando ma deste, o sorriso largo dos teus lábios muito vermelhos, os teus dentes brancos como a cor da tua alma, como a cor de ti dentro da tua alma.
A tua alma ficou nesta caneta e talvez seja por isso que quando a olho te olho, e quando escrevo te escrevo, e quando uma lágrima cai sobre ela és tu como uma lágrima, como um líquido de mim que por mais que escorra e saia jamais deixará de ser meu.
És uma lágrima que saltou para fora de mim sem deixar de estar cá dentro.
Na caneta, a tua imagem. Na caneta, o passado. Na caneta, a tristeza de para o meu corpo não poderes ser mais do que passado.
As tuas palavras no espelhado da caneta: escrever é o que fazes bem, escrever é a tua arte; não poderia oferecer-te nada mais que isto – um objecto que te ajude na tua arte.
A tua ternura nas palavras.
Escrever é a tua arte.
O meu medo a ouvir as tuas palavras.
As tuas palavras: sei que vais cuidar dela como cuidaste de mim, trata-a como sempre me trataste.
O terror de encontrar em cada letra do que disseste um esgar de dor, um aceno de despedida, um adeus sem retorno. O terror de seres minha mãe e de te precisar mais do que me preciso.
Trata-a como sempre me trataste.
A caneta a tremer na minha mão. A caneta a tremer na minha mão como agora treme.
Trata-a como sempre me trataste.
O abraço, a fuga, o desespero, o silêncio.
Os teus olhos a dizerem-me: és tudo que tive.
És tudo que tive.
Os meus a pedirem-te: não vás, fica, fica comigo e luta comigo contra a doença que te quer levar, luta comigo.
A lágrima a cair nesta caneta que te espelha.
A primeira de muitas lágrimas a cair sobre a caneta que és tu.
És tudo que tive.
A força dos meus braços em redor das tuas costas, a força dos meus braços a apertar-te, a tentar exorcizar o vazio que já nessa altura eras.
O cheiro dos teus cabelos: podre, ultrapassado, como um animal atropelado no centro de uma estrada.
Os teus cabelos eram a morte.
O abraço a durar, o abraço a ser som, a ser gesto, a ser emoção, a ser canção, a ser verso.
Os teus braços a tentarem apertar-me e a mais não conseguirem que um ligeiro afago. Os teus braços derrotados pela doença.
Os teus olhos: redondos, negros, caídos.
As palavras dos teus olhos, as últimas palavras dos teus olhos: vou abandonar-te para não ser abandonada por ti, morrer é o caminho que Deus inventou para as mães não sofrerem a dor máxima de assistir à morte de um filho, morrer é a única fuga possível de um sofrimento anunciado.
A caneta cada vez mais trémula, a caneta a cair ao chão, a caneta a sentir em cima o peso do teu corpo morto, tu e a caneta juntas no chão do meu quarto.
Vou abandonar-te para não ser abandonada por ti.
A caneta no chão a tremer como tremia na minha mão, a caneta a tocar-te, a caneta a escrever como a minha mão escrevia sem ter caneta: vou tratar dele como tu sempre o trataste.
Esta caneta com que te escrevo és tu.
Quebra: s.f. O mesmo que fragilidade, o mesmo que humanidade, o mesmo que nós todos; somos uma quebra temporária — e é assim que nos vamos mantendo de pé.