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Pedro Chagas Freitas
Pedro Chagas Freitas COMO F***DER UM CASAMENTO Manual Prático para Mul

Notícia

Quebra

Quebra: s.f. Aquilo que só acontece aos, raros, que têm a coluna direita; o que há mais é quem dobre a coluna para ser colunável.
08 de maio de 2018 às 11:12
casal apaixonado
casal apaixonado

Escrevo-te com a caneta que me ofereceste.

Está intacta, limpa, brilhante, e no que ela espelha ainda vejo o teu rosto quando ma deste, o sorriso largo dos teus lábios muito vermelhos, os teus dentes brancos como a cor da tua alma, como a cor de ti dentro da tua alma.

A tua alma ficou nesta caneta e talvez seja por isso que quando a olho te olho, e quando escrevo te escrevo, e quando uma lágrima cai sobre ela és tu como uma lágrima, como um líquido de mim que por mais que escorra e saia jamais deixará de ser meu.

És uma lágrima que saltou para fora de mim sem deixar de estar cá dentro.

Na caneta, a tua imagem. Na caneta, o passado. Na caneta, a tristeza de para o meu corpo não poderes ser mais do que passado.

As tuas palavras no espelhado da caneta: escrever é o que fazes bem, escrever é a tua arte; não poderia oferecer-te nada mais que isto – um objecto que te ajude na tua arte.

A tua ternura nas palavras.

Escrever é a tua arte.

O meu medo a ouvir as tuas palavras.

As tuas palavras: sei que vais cuidar dela como cuidaste de mim, trata-a como sempre me trataste.

O terror de encontrar em cada letra do que disseste um esgar de dor, um aceno de despedida, um adeus sem retorno. O terror de seres minha mãe e de te precisar mais do que me preciso.

Trata-a como sempre me trataste.

A caneta a tremer na minha mão. A caneta a tremer na minha mão como agora treme.

Trata-a como sempre me trataste.

O abraço, a fuga, o desespero, o silêncio.

Os teus olhos a dizerem-me: és tudo que tive.

És tudo que tive.

Os meus a pedirem-te: não vás, fica, fica comigo e luta comigo contra a doença que te quer levar, luta comigo.

A lágrima a cair nesta caneta que te espelha.

A primeira de muitas lágrimas a cair sobre a caneta que és tu.

És tudo que tive.

A força dos meus braços em redor das tuas costas, a força dos meus braços a apertar-te, a tentar exorcizar o vazio que já nessa altura eras.

O cheiro dos teus cabelos: podre, ultrapassado, como um animal atropelado no centro de uma estrada.

Os teus cabelos eram a morte.

O abraço a durar, o abraço a ser som, a ser gesto, a ser emoção, a ser canção, a ser verso.

Os teus braços a tentarem apertar-me e a mais não conseguirem que um ligeiro afago. Os teus braços derrotados pela doença.

Os teus olhos: redondos, negros, caídos.

As palavras dos teus olhos, as últimas palavras dos teus olhos: vou abandonar-te para não ser abandonada por ti, morrer é o caminho que Deus inventou para as mães não sofrerem a dor máxima de assistir à morte de um filho, morrer é a única fuga possível de um sofrimento anunciado.

A caneta cada vez mais trémula, a caneta a cair ao chão, a caneta a sentir em cima o peso do teu corpo morto, tu e a caneta juntas no chão do meu quarto.

Vou abandonar-te para não ser abandonada por ti.

A caneta no chão a tremer como tremia na minha mão, a caneta a tocar-te, a caneta a escrever como a minha mão escrevia sem ter caneta: vou tratar dele como tu sempre o trataste.

Esta caneta com que te escrevo és tu.

Quebra: s.f. O mesmo que fragilidade, o mesmo que humanidade, o mesmo que nós todos; somos uma quebra temporária — e é assim que nos vamos mantendo de pé.

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