
Quando abro os olhos, vejo um rapaz de olhos claros, cabelo despenteado e barba sentado na mesa ao lado. Está a ler o último romance do Murakami e a fumar tabaco de enrolar. Sinto o seu perfume de longe, ele levanta os olhos e sorri. Então faço o impensável, sorrio de volta e aceno com a mão num gesto de inequívoco desafio, como quem diz, senta-te aqui ao meu lado.
É sempre no princípio do outono que dou uma volta à minha vida, escrevo num caderninho de capa preta todos os erros que cometi e todas as coisas que quero e que ainda não tenho.
As páginas enchem-se de episódios e ideias feitas que quero esquecer. As coisas boas não precisam de ser perpetuadas nas palavras, ficam para sempre presas na memória, por isso nunca tenho medo de esquecer o riso, as mãos claras, o olhar a sossegar-me a alma e a pedir-me beijos e o pequeno-almoço na cama.
Mas as más, essas quero mesmo arrumá-las num canto onde a memória não se perca nem sofra, por isso faço listas de coisas que me magoaram, como aquele dia em que te esperei até às quatro da madrugada e ele já não voltou, pouco tempo depois da única vez que discutimos e gritámos um com o outro e da manhã em que se esqueceu que eu fazia anos e saíu sem me acordar com um beijo. E ainda todas as vezes que engoli em seco quando devia ter dito, "não quero, não gosto, assim não me interessa", mas naquela altura não conseguia falar por mim, vivia dissolvida no sangue, e o sangue não tem voz, muito menos quando se mistura com outro mais forte.
Pego no caderninho preto e sento-me na esplanada das Portas do Sol que é a minha nova cantina desde que troquei o andar na Lapa por umas águas furtadas em Alfama. Precisava de limpar os últimos anos da cabeça e do coração, portanto nada melhor do que mudar de casa quando não consegues mudar de vida. Quando dás por isso tens mesmo outra vida e é assim que se avança pelos dias, sem medo que o passado regresse em forma de sonhos ou de visões e volte a atormentar-te.
Não se se pode chamar outono a esses dias de loucura estival que fazem a cidade vibrar ainda mais. Os turistas andam loucos com o clima, se calhar pensam que isto é normal, e os lisboetas nãos sabem mais o que fazer para aguentar tantos turistas, tantos tuk-tuks, tantos restaurantes novos, tantas celebridades apaixonadas pelo lugar onde Ulisses descansou.
A lua está em minguante, mas consegue ainda impor-se no céu mesmo antes do sol cair, e eu penso que a qualquer momento a minha vida pode mudar. Fecho o caderninho e respiro fundo. De nada adianta escrever os erros, os erros só servem para avançar na vida, tudo o resto é conversa repetida e farta de andar na roda do ratinho estou eu.
Fico quieta e peço minha estrela, que por acaso é um planeta mas brilha mais e melhor que muitas, que me mande um poeta que me escreva nos vidros embaciados do carro versos de amor e devore livros com a paixão de um alcoólico, que não tenha medo de nada e se esteja nas tintas para operações financeiras e carros descapotáveis.
Quando abro os olhos, vejo um rapaz de olhos claros, cabelo despenteado e barba sentado na mesa ao lado. Está a ler o último romance do Murakami e a fumar tabaco de enrolar. Sinto o seu perfume de longe, ele levanta os olhos e sorri. Então faço o impensável, sorrio de volta e aceno com a mão num gesto de inequívoco desafio, como quem diz, "senta-te aqui ao meu lado". Ele levanta-se e avança sem medo. Será poeta?
Nenhum de nós consegue parar de sorrir. É como se as nossas caras tivessem fitas nos cantos da boca que dão um laço à volta da cabeça.
Ele diz o nome, mas esqueço-me. Em vez disso invento um nome novo, porque agora é tudo novo na minha vida.
- Vives em Alfama?
- Sim, cheguei há umas semanas. E tu?
- Eu vivo aqui há muitos anos. Bem-vinda ao bairro mais bonito de Lisboa. Fica-te bem.
- E a ti também.
É agora que vou abrir as asas ou espero mais um bocadinho? É melhor esperar até amanhã. Amanhã e outro dia e se a minha estrela estiver certa, estou aqui sentada com este rapaz a trocar livros e fatias de vida.