
"O mundo mudou". "A pandemia mudou-nos". "Kamala Harris Vice-Presidente dos EUA". "Papa Francisco defende homossexuais". Lemos títulos como esses e a primeira reação é pensarmos que, de facto, o mundo mudou. Assistimos ao nascimento de movimentos como o "Me Too" ou o "Black Lives Matter" e a sensação é a de que as mulheres, de facto, ganharam voz e os negros têm, finalmente, uma plataforma global de representatividade, ainda que tenha sido "necessário" o assassinato de George Floyd para despertar as consciências mais confusas ou mais hipócritas.
O mundo parece ter acordado de repente. Não usei a palavra "sensação" ao acaso. Porque, após analisarmos a realidade, percebemos que os critérios para discussão de pautas como as que referi, dependem sempre de fatores estranhos ao nosso entendimento.
Vejamos: Harvey Weinstein foi o bode expiatório do movimento global que expôs o assédio sexual em Hollywood, o santuário do entretenimento norte-americano, espelho para o resto do mundo. Outros homens famosos viram as carreiras destruídas por escândalos semelhantes e, de repente, muitas mulheres (e homens) perceberam a diferença entre a sedução ou galanteio e o abuso puro e duro. Não passou muito tempo e outro nome poderoso da indústria do entretenimento, Bill Cosby, actor e humorista (e negro) foi acusado e preso por, alegadamente, ter abusado de centenas de mulheres. Mas já foi solto e não poderá voltar a ser julgado pelo mesmo crime. Por isso disse "alegadamente". Lá se foi a questão dos exemplos.
Ah, esperem... Harvey Weinstein continua preso, portanto tudo bem. Porque na impossibilidade de se prender outro abusador, um dia sentado na maior cadeira do poder na América, há que dar exemplos com o que está mais à mão de semear e cuja prisão seja menos "problemática" que a de um "símbolo" duma comunidade que assiste ao assassinato sistemático de tantos dos seus homens, das suas mulheres e dos seus jovens.
Portugal importou os conceitos mas, lá está, talvez não os tenha entendido ou os "fatores estranhos ao nosso entendimento" a que me referi antes, também aqui ditem as regras. Tal como na América, várias mulheres famosas vieram a público falar, pela primeira vez, sobre terem sido vítimas de abuso e assédio por homens em posições de poder. E o país parece que despertava para um pesadelo desconhecido, quando sabemos que, no fundo, não é bem assim. E não estou com teorias de café. Em Portugal não houve, até ao momento, nenhum Weinstein ou Cosby. E, provavelmente, não haverá, porque há muito que normalizámos as situações com posturas saloias de masculinidade: "já não se pode brincar com nada", "agora tudo é assédio".
Não é, mas muitas vezes é. E saber a diferença faz a diferença. A representatividade ajuda a resolver o problema? Mais mulheres no governo, no parlamento, na polícia, nos tribunais... ajudaria a mudar o cenário? Na minha opinião, não. Porque o que é preciso é algo que dá mais trabalho e leva mais tempo: educar homens e mulheres desde tenra idade, a perceberem o significado de empatia e de respeito. Sobretudo, do verdadeiro significado de "poder" e de como não deve ser usado.
Sim, os exemplos continuam a ser importantes. Mas exemplos sem educação para os entendermos e o que representam, é o mesmo que segurarmos uma bóia em alto-mar: se não soubermos para o que serve e como usa-la, afogamo-nos na mesma. De que serve gritar "Black Lives Matter" se não se discute o significado ou o impacto, independentemente do tom de pele de cada pessoa, de um homem (e ser negro faz, neste contexto, toda a diferença) ter sido morto à luz do dia, com pessoas a assistirem, numa rua de Lisboa? "Ah, mas o assassino foi preso e condenado". Pois foi, mal seria se assim não fosse. Mas houve debates pelo que significa o crime ou apenas aberturas de telejornais pelo impacto da notícia?
Hoje Portugal arranjou um bode expiatório para o racismo, um problema que está, sobretudo, na base de parte da estrutura social do país. Entende-se, é mais fácil discutir pessoas. É mais fácil apontar o dedo ao vizinho que bate na mulher, do que ter peso na consciência quando se ouvem os gritos da senhora e se pensa: "entre marido e mulher, não se mete a colher". Os bodes expiatórios do momento servem apenas o propósito de quem não quer discutir nada e parece não ter os argumentos ou as ferramentas para, efetivamente, mudar o que precisa de mudar.
Lamento, mas já não há pachorra para o bailinho da retórica paternalista, sem ações concretas que sustentem as ditas intenções nobres. Portanto, importar conceitos sem os conhecer para entender e contextualizar, é como se a Aretha Franklin fizesse uma versão de 'Estranha Forma de Vida' e pensasse que Amália Rodrigues era o nome verdadeiro de Carmen Miranda.