
EXCLUSIVO 'Chefs Michelin': Para Rui Paula, cumprir o papel de chef é "tocar os sentidos e a alma de quem se senta à mesa"
Aprendeu o "verdadeiro significado da comida" a observar a mãe e a avô, durante os tempos de infância em Alijó, "no calor da tradição e do afeto". Com raízes profundas na gastronomia tradicional, a cozinha deste chef com duas estrelas Michelin é “contemporânea na apresentação, na técnica, na criatividade”. Em cada prato que cria, Rui Paula quer ir para além dos sabores, procura que as suas criações sejam um “despertar dos sentidos”. A FLASH! Verão 2025 conversou longamente com ele.O chef Rui Paula diz que cozinha “com memória” e parte dessa memória vem dos tempos de infância em Alijó, a observar a mãe e a avó. “A minha cozinha nasce precisamente aí — na cozinha da minha avó e mãe, no calor da tradição e do afeto. Foram elas que me ensinaram o verdadeiro significado da comida: o cuidado, a partilha, a memória. Cresci a vê-las transformar ingredientes simples em pratos cheios de sabor e alma”, recorda o chef de 58 anos.
Com raízes profundas na gastronomia tradicional, a cozinha de Rui Paula é “contemporânea na apresentação, na técnica, na criatividade”. “A nossa gastronomia é riquíssima, com uma identidade forte, sabores marcantes e uma relação muito próxima com o território e com os produtos do mar e da terra. Eu não poderia ignorar isso. O que faço é reinterpretar essa tradição, dar-lhe uma nova leitura, mais atual e surpreendente, sem nunca trair a sua essência”, assegura o chef, natural do Porto.
Em cada prato que cria, Rui Paula quer ir para além dos sabores, procura que as suas criações sejam um “despertar dos sentidos”. “É criar uma experiência completa – que começa no olhar, passa pelo aroma, pela textura, pela memória e, claro, pelo paladar. Quando um prato chega à mesa, ele tem de provocar algo em quem o recebe: surpresa, emoção, curiosidade. Quero que cada elemento conte uma história, que cada detalhe tenha intenção”, descreve.
LEVAR A COZINHA AO LIMITE
Com a Casa de Chá da Boa Nova, em Leça da Palmeira, Rui Paula conquistou duas estrelas Michelin. É onde leva a “cozinha ao limite”, onde pode “arriscar mais”. “É ali que posso trabalhar a alta gastronomia com maior profundidade e rigor, onde trabalho um menu de degustação de 21, 12 ou 6 momentos.” Na região do Douro tem o DOC – e ainda o DOP, na cidade do Porto, com Joel Paiva como chef residente.
Como descreve Rui Paula, o DOC “respira o território”, é a paisagem que “dita o ritmo”. “É uma cozinha muito enraizada na região, com produtos locais e uma ligação forte ao rio, ao vinho, à terra. É um espaço mais descontraído, mas ainda assim exigente na técnica e no sabor”, descreve. Para Rui Paula, estar no meio do Douro vinhateiro é “é estar em contacto com a origem dos sabores, com a história e com a cultura que moldam a nossa gastronomia”. “Fascina-me a ligação profunda entre o terroir, o vinho e a comida.”
Com duas estrelas Michelin, qual é o verdadeiro peso de ser distinguido com estes galardões tão cobiçados?
Receber duas estrelas Michelin é, sem dúvida, uma honra imensa — é o reconhecimento de anos de dedicação, paixão e sacrifício. Mas, ao mesmo tempo, carrega um peso de responsabilidade muito grande. Cada estrela representa um compromisso com a excelência, com a consistência e com a superação diária. Um cliente que chegue à Casa de Chá já vai com uma expectativa altíssima, e o meu dever é corresponder — ou até superar — essa expectativa, todos os dias. A pressão é constante, mas é também o que me motiva. As estrelas não são um ponto de chegada, são um estímulo para continuar a evoluir, a criar e a emocionar através da cozinha.
Conquistar uma estrela Michelin é um objetivo ou uma consequência do trabalho diário?
É, acima de tudo, uma consequência. Claro que qualquer chef ambicioso sonha em ver o seu trabalho reconhecido, mas a estrela Michelin não pode ser o foco principal. O verdadeiro objetivo é fazer bem o que amamos todos os dias: cozinhar com alma, respeitar os produtos, cuidar dos detalhes, liderar uma equipa com paixão. Se esse trabalho for feito com verdade e consistência, os reconhecimentos – como uma estrela Michelin – acabam por surgir naturalmente. A estrela é um reflexo da entrega, não uma meta isolada. Quando colocamos a estrela como objetivo único, corremos o risco de perder aquilo que nos trouxe até aqui.
De que forma a sua cozinha é influenciada pelas mulheres da sua vida (mãe e avós)?
A minha cozinha nasce precisamente aí – na cozinha da minha avó e mãe, no calor da tradição e do afeto. Foram elas que me ensinaram o verdadeiro significado da comida: o cuidado, a partilha, a memória. Cresci a vê-las transformar ingredientes simples em pratos cheios de sabor e alma. Essa ligação emocional à comida ficou em mim para sempre. Hoje, mesmo com uma abordagem mais técnica e contemporânea, muitas das minhas criações têm raízes nesses sabores de infância. Eu costumo dizer que cozinho com memória.
Apesar de ser uma cozinha contemporânea vai buscar muito das raízes da tradição da gastronomia portuguesa?
Sem dúvida. A minha cozinha é contemporânea na apresentação, na técnica, na criatividade – mas tem raízes muito profundas na tradição portuguesa. A nossa gastronomia é riquíssima, com uma identidade forte, sabores marcantes e uma relação muito próxima com o território e com os produtos do mar e da terra. Eu não poderia ignorar isso. O que faço é reinterpretar essa tradição, dar-lhe uma nova leitura, mais atual e surpreendente, sem nunca trair a sua essência.
Quais as suas maiores inspirações na gastronomia e no seu crescimento como chef de cozinha?
As minhas maiores inspirações vêm de vários lugares – e, sobretudo, de pessoas. Em primeiro lugar, a minha família. Foi ali que tudo começou, com a minha mãe e a minha avó, que me ensinaram o valor da comida feita com amor. Depois, ao longo do meu percurso, fui-me inspirando em grandes nomes da gastronomia mundial, chefs que transformaram a cozinha em arte, como Ferran Adrià ou Alain Ducasse – referências que nos mostram até onde a criatividade pode ir. Mas também me inspiro em Portugal: nos produtos locais, na paisagem, no mar, nas tradições que herdei. Crescer como chef é um processo contínuo – é preciso estar sempre aberto a aprender, viajar, conhecer novas culturas, observar e, acima de tudo, sentir. Porque cozinhar, para mim, é uma forma de expressão.
O que significa fazer uma cozinha que "desperte os sentidos"?
Significa ir além do sabor. Cozinhar para despertar os sentidos é criar uma experiência completa – que começa no olhar, passa pelo aroma, pela textura, pela memória e, claro, pelo paladar. Quando um prato chega à mesa, ele tem de provocar algo em quem o recebe: surpresa, emoção, curiosidade. Quero que cada elemento conte uma história, que cada detalhe tenha intenção. Um cheiro pode transportar-nos à infância, uma textura pode surpreender o palato, uma apresentação pode quase emocionar. A minha cozinha procura isso: criar ligações sensoriais e afetivas, porque comer é, acima de tudo, um ato profundamente humano. Se consigo tocar os sentidos e a alma de quem se senta à minha mesa, então sei que cumpri o meu papel como chef.
E que papel é esse? O que pretende transmitir às pessoas com a sua cozinha?
Quero que as pessoas saiam dos meus restaurantes não apenas saciadas, mas tocadas. Que levem consigo uma memória, uma sensação, algo que fique para além do momento da refeição. No fundo, pretendo criar experiências que emocionem — porque a cozinha, quando é feita com verdade, tem esse poder.
O Rui Paula é hoje um chef muito diferente daquele que abriu o Cêpa Torta?
Sou diferente, claro – seria estranho se não fosse. Cresci muito desde o Cêpa Torta, tanto como chef como como ser humano. Naquela altura, tinha uma enorme vontade de fazer algo diferente, mas ainda estava a descobrir o meu caminho, a minha identidade. Com o tempo, com os erros, com os desafios e as conquistas, fui ganhando maturidade, conhecimento e uma visão mais clara do que quero transmitir com a minha cozinha. Hoje sou mais exigente, mais focado nos detalhes, mas também mais consciente do papel que tenho enquanto representante da nossa gastronomia. A essência – a paixão, o respeito pelas origens, a entrega total – essa continua igual. Mas a forma como a expresso evoluiu muito.
O que diferencia a cozinha do Casa de Chá (2 estrelas Michelin), do DOP e do DOC do Douro?
Cada restaurante tem a sua personalidade, porque cada um nasce num contexto diferente e para um público distinto – embora todos partilhem o mesmo ADN enquanto grupo: qualidade, respeito pelo produto, e um olhar criativo sobre a cozinha portuguesa. A Casa de Chá da Boa Nova, com duas estrelas Michelin, é o espaço onde levo a cozinha ao limite — é ali que posso arriscar mais, trabalhar a alta gastronomia com maior profundidade e rigor, onde trabalho um menu de degustação de 21, 12 ou 6 momentos. É um restaurante de emoções fortes, muito ligado ao mar, onde tudo é pensado ao detalhe para criar uma experiência sensorial completa. No dop, no Porto, a abordagem é mais urbana, mais próxima do quotidiano da cidade, mas sem perder sofisticação. É uma cozinha de identidade portuguesa com uma elegância contemporânea e influência asiática, onde trabalhamos um menu de degustação de 14, 10 ou 6 momentos. É um restaurante que tem vindo a evoluir muito, onde estamos a trabalhar com foco e consistência para alcançar objetivos maiores. O DOC, no Douro, respira o território. Ali é a paisagem que dita o ritmo. É uma cozinha muito enraizada na região, com produtos locais e uma ligação forte ao rio, ao vinho, à terra. É um espaço mais descontraído, mas ainda assim exigente na técnica e no sabor. O restaurante foi todo remodelado recentemente e está lindíssimo. Apostamos num menu de degustação de 14, 11 ou 6 momentos mas também mantivemos os pratos clássicos à carta, que tão adorados são pelos portugueses.
O que o fascina mais em estar no meio do Douro vinhateiro?
O Douro, Património da Humanidade, é um lugar único – uma paisagem que é ao mesmo tempo selvagem e cuidada, onde a natureza e o homem se entrelaçam de forma perfeita. Estar no meio do Douro vinhateiro é estar em contacto com a origem dos sabores, com a história e com a cultura que moldam a nossa gastronomia. Fascina-me a ligação profunda entre o terroir, o vinho e a comida; aqui, tudo é autêntico e feito com respeito pelo tempo e pela tradição. É inspirador trabalhar num território tão vivo, onde cada estação, cada vinha, cada rio traz uma nova energia para a cozinha. O Douro não é só um cenário – é uma fonte constante de inspiração e um convite à criatividade.
O Douro é uma região em crescimento em termos de cozinha?
Sim, o Douro é, sem dúvida, uma região em crescimento em termos de gastronomia. Nos últimos anos, tem-se assistido a uma verdadeira revolução culinária, com chefs e produtores locais a valorizarem os produtos endógenos e a criar experiências gastronómicas autênticas e inovadoras. Além disso, o turismo tem vindo a assumir uma relevância crescente no desenvolvimento social e económico do Douro, com o enoturismo e o turismo gastronómico a desempenharem um papel extremamente importante.