Recorda-se de Fernando Mamede? O antigo atleta vive isolado e em depressão: "Já chega de lágrimas"
Foi uma das maiores glórias do atletismo nacional e mundial, só que há muito tempo que não aparece na praça pública. Tem-lhe valido a companheira, mas "também ela já não consegue". O escritor Luís Osório chama a atenção para o sofrimento do antigo campeão.
"Fernando Mamede está em casa. Raramente sai, raramente tem a força suficiente para encarar os vizinhos, a sua rua, a cidade, o país. Está profundamente convencido de que apenas o recordamos pelos fracassos, por ser um falhado, por não ter conseguido nos momentos decisivos, por ter passado ao lado da glória quando parecia ter nascido para ela", é assim que começa mais um 'Postal do Dia' do jornalista e escritor Luís Osório. Uma crónica dedicada, desta vez, a Fernando Mamede, antiga glória do atletismo.
Prossegue Osório: "Fernando está com a sua companheira de sempre. Que o amparou em todos estes anos, que o abraçou sempre que ele precisava de um abraço, que foi corajosa a enfrentar os cabos que a vida lhes foi colocando à frente. Mas também ela já não consegue. Foram tantos impactos, tantas ondas que a levaram para terra, tantas cambalhotas e feridas e tormentas que, desta vez, também ela não esta a conseguir. Quem dá um abraço aos que abraçam? Quem apoia os que apoiam? Quem se chega à frente quando os que se chegam à frente já não conseguem mais? Ocorrem-me sempre estas perguntas."
"Fernando Mamede foi um dos nossos maiores campeões. Recordista mundial dos 10 mil metros numa corrida épica, julgo que em Estocolmo. Quando estava bem era praticamente invencível e Moniz Pereira jurava que ninguém era como ele – nem mesmo Carlos Lopes, sendo mais completo, era tão poderoso. Mas Fernando carrega a cruz de falhar nos momentos decisivos. De desistir quando todos achavam que desta vez é que era. De perder sem luta numa final olímpica que tinha a obrigação de ganhar por ser tão melhor do que todos os outros. Fernando carrega a cruz da responsabilidade, de achar que talvez tenha desiludido o seu mentor, de acreditar que desesperançou para sempre os portugueses", escreve Luís Osório.
O escritor apela a Fernando Mamede e à sua companheira que "não desistam": "Quando o olham na rua, quando se aproximam, quando até parecem simpáticos, aposto que existe na sua cabeça a ideia de que no íntimo as pessoas recordam-no pelos tropeços e pela fragilidade e isso faz-lhe mal, puxa-o para baixo, rebenta-o por dentro. E a sua mulher, habituada a ser soldado contra as angústias, sente que mais nada pode fazer, que também a ela lhe apetece desistir da corrida. Mas não podem desistir. Querido Fernando… não faz sentido pensar que o país o olha de lado ou que sorri quando o encontra na rua ou no supermercado. Há sempre gente para tudo, sabemos isso. Mas bolas, Fernando. Se eu fosse seu amigo, se nos pudéssemos tratar por tu, dizia-te para te deixares disso."
Conclui Luís Osório o seu 'Postal do Dia' dedicado a Fernando Mamede: "Podes ficar em casa, conheço bem e respeito a depressão e todos os seus contornos, mas se ficares em casa que não seja por teres falhado a medalha olímpica e mais uma ou dias grandes competições, não faz sentido. Porque foste grande, foste um dos maiores. Saíste de Beja tão miúdo, um "trinca-espinhas" de uma família humilde que nunca imaginou que chegasses ao patamar onde apenas estão os que jogam para a imortalidade. Quem poderia esperar que tivesses chegado tão longe, Fernando? Chegaste mais longe do que a maioria de nós, sabes isso? Tens noção de que a maioria de todos os que aqui estamos, de todos os portugueses, de todos os cidadãos do mundo, nunca teve ou terá acesso à montanha onde chegaste a morar? Tens noção do que é isso, Fernando? Lembras-te da tua escola, do teu liceu? Dos teus colegas, da dificuldade de teres sapatilhas boas, das corridas em Santiago Maior com os teus amigos que por lá ficaram na terra e nos cafés e tascas enquanto tu galopavas no mundo? Lembras-te Fernando quando foste à inauguração do complexo desportivo que Beja batizou com o teu nome? Bolas, campeão, já chega de lágrimas. Levanta-te e ouve os aplausos deste país que te admira muito.Vamos."