
A solidão de um estado de espírito. Vaguear pela casa à espera de um motivo, um só, para outra vez valer a pena. Os gatos a miarem, os olhos perdidos na janela aberta – a tentação do salto no felino branco e cinzento pendurado no vidro. Abrir vezes sem conta a caixa de correio: nada – tudo igual. E a incerteza que paira no ar. O telefone pousado, calado: a certeza de que nada avança. Cede o corpo: braços e pernas cansados de um dia de descanso.
Nada cansa mais do que o descansar de quem não tem com o que se cansar.
Gritar para ver se estou. Gritar para mostrar que estou.
A vizinha de baixo a tocar à campainha, a exigir-me sem palavras um pedido de desculpa. Faço-lhe a vontade. Depois, espero alguns segundos – os suficientes para a ouvir voltar a entrar em casa – e grito ainda mais alto. Até os meus próprios ouvidos se sentirem feridos pela minha própria voz.
Uma guerra de sentidos dentro de mim.
E a vizinha que regressa – que não pode ser; que é uma falta de respeito. Resolvo entrar no jogo. Pergunto-lhe: o que é o respeito? E ela parada, a ver-me perguntar mais uma vez: o que é o respeito? Demora alguns segundos mas sai-se bem da encruzilhada: respeito é o que você não demonstra por mim e pelo meu filho pequeno que precisa de dormir. Digo-lhe que afirmar algo pela negação de outro algo é um argumento inválido dentro das esferas da lógica. Acrescento com a maior das descontracções: game over, perdeu. E fecho com tranquilidade a porta.
Ainda a ouço vociferar palavrões e a bater violentamente na parede. Escrevo num papel que coloco por debaixo da porta: "é bom saber que estou a contribuir para que liberte a raiva que tem acumulada dentro de si. Sempre tive inveja das sanitas: são um recipiente onde toda a porcaria vai parar e jamais se sentem presas a ela. São meros túneis, locais de passagem. Invejo as sanitas desde que me conheço. Grande parte dos problemas da humanidade se resolveria se todos tivéssemos o mesmo poder de encaixe de uma sanita. O meu sonho é ter, um dia, uma personalidade de sanita." Sinto – pelos segundos em silêncio – que ela leu o que escrevi. Depois ouço-a descer as escadas. Ouço também um ligeiro ronronar de choro. Relaxo e consigo finalmente adormecer-me.
Salvar uma vida é sempre um bom motivo para dormir tranquilo.
Queda: s.f. Lição número um do manual; o que sobrevive feliz não é o que não cai (até porque não existe o que não cai); o que sobrevive feliz é o que cai do melhor lado: aquele lado pelo qual te levantas mais rápido. E tu: já descobriste a queda que te assenta melhor?