
Alguém roubara a Tesouraria da Câmara Municipal de Setúbal e tentara incendiar a repartição. Naquele tempo, a luta política estava ao rubro e os partidos políticos lançavam suspeitas, acusando-se reciprocamente. Vivíamos a ressaca do Verão Quente.
Desinteressados da querela política, investigámos a sério e descobrimos a autora do crime. Era uma mulher, funcionária da autarquia. Quando a prendemos, pediu-nos para ir a casa despedir-se dos filhos. Dois putos, pequeninos, muito bonitos e o quadro da despedida das duas crianças tocou-nos profundamente. Fizemos o caminho para as Mónicas, em silêncio, escutando apenas os soluços da mulher. Ficou presa e nós continuámos a sedimentar a prova recolhida. Naquele tempo, se houvesse detidos, o prazo para concluir o processo era de quarenta dias. Trabalhámos intensamente e na minha cabeça e do meu colega Manuel Pedreiro persistiam as imagens dos dois miúdos a despedirem-se da mãe. Falámos com o nosso Chefe. Contámos-lhe o drama que tínhamos vivido, o processo estava pronto e o prazo previsto terminava dois dias depois do Natal. Não fazia sentido cumpri-lo até ao fim e podíamos permitir que aquela mãe vivesse a consoada com os seus filhos. Ele concordou, mas era dia 23, já de noite. No dia 24, os serviços de Polícia estariam fechados. Era urgente expor o caso ao juiz de instrução. Apanhámo-lo quando se preparava para sair do seu gabinete de trabalho. Decidiu que tínhamos razão e despachou a libertação da mulher. Porém, era necessário dar baixa do processo e colocar o sê-lo branco. Fomos trabalhar no dia seguinte, embora já fosse folga de Natal. Pedimos ao chefe da secretaria que viesse à Polícia para findar os trabalhos. Já estava a gozar o seu Natal, longe de Lisboa, mas veio. A aflição da espera tornou-se maior porque a prisão das Mónicas fechava às quatro da tarde.
Batemos ao portão muito perto dessa hora, pedimos para chamar a mulher e dissemos-lhe que ia sair. Espantada e feliz, mas de coração apertado porque não tinha dinheiro para regressar a Setúbal. Decidimos que lhe daríamos boleia. E assim foi. O reencontro com os filhos, foi a emoção maior. Aquele Natal ganhava outro sentido. Para aquela família unida e para nós que saboreámos aquele pedaço de amor. É verdade. Foi o mais bonito Natal das nossas vidas.