
Dos muitos pecados que terei de prestar contas a S. Pedro, há um que nunca cometi: lançar piropos a raparigas, ou mulheres, que se cruzaram comigo ao longo destas muitas décadas de existência. Ainda era um puto quando percebi o incómodo que sobressaltava as minhas colegas de outros tempos. "Andas na tropa? É que já marchavas"; "Só queria que fosses uma pastilha elástica para te comer o dia todo"; e "Ó linda! Até te fazia um vestidinho de saliva" são alguns dos muitos piropos que tratam as mulheres como objeto sexual, condicionadas por uma cultura machista, patriarcal, que se reconhece com direito a abusar dos direitos de cidadania de outrem. Tem, na sua origem, o não reconhecimento da igualdade de género e é uma arma de exercício de poder patológico.
São expressões que se generalizaram entre os cultores do piropo porque eles próprios acham graça à sua misoginia.
Esta semana aconteceu uma dessas exibições do "poder masculino". Na Costa de Caparica, um indivíduo, que estava acompanhado de outros amigos, atirou um ou dois piropos a uma transeunte. O companheiro, que esperava por ela no interior de um automóvel, percebeu o incómodo da moça e não teve de modas: puxou de uma arma e disparou, matando o jovem que a provocara.
A desproporcionalidade da reação revela o outro lado perverso. Homens que consideram as mulheres como sua propriedade que consideram um insulto como violação da sua integridade enquanto donos das suas companheiras.
Se o piropo, na esmagadora maioria das situações, não tem condições objetivas para ser considerado um crime, responder a tiro a um comentário misógino é uma barbárie criminal que mergulha no mesmo caldo cultural onde a mulher é coisa, objeto, tutela, condicionada pelos humores dos machos. A mesma alarvidade tutela estes comportamentos, típicos de comunidades em que a cidadania e a igualdade são apenas palavras mitológicas sem cómodo numa sociedade que assenta em sólidos valores de fraternidade e de reconhecimento.