
Afinal, de que vale a conversa do distanciamento, máscaras, vacinas... se o que a malta quer, no fim, é mandar tudo às favas e curtir como nos bons velhos tempos? De que vale chorar pelos mais de quatro milhões de mortos de Covid-19 em todo o mundo, se queremos jogar à roleta russa com a sorte que nos vai cabendo?
Numa altura em que a pandemia não dá tréguas em lado nenhum, de tal forma que o Japão eliminou o público dos Jogos Olímpicos, a Europa joga fogo no parque e mostra que o mais importante é dar ao povo o que o povo quer: um Euro. Mesmo com números que, ora sobem, ora descem e voltam a subir, o estádio de Wembley, na Inglaterra, recebeu milhares de adeptos para as semi-finais e para uma final desastrosa para os ingleses. Porque "the show must go on" a qualquer preço, dê por onde der. Mesmo que se pague em contágios, a economia não pode viver refém do medo.
É certo que a "política do Apocalipse" em relação à pandemia funciona até onde pode, mas está destinada a perder fôlego por causa da falsa ideia do resultado das vacinas ou da desinformação que resulta das dúvidas da própria ciência. O futebol, para o bem e para o menos bom, tem (ou pretende ter) o poder de juntar pessoas à volta dum mesmo propósito: celebrar conquistas. Qualquer jogo é um risco mais ou menos calculado, em função dos objetivos de quem tem uma palavra a dizer.
Eu adoro futebol. Mas isso basta para eu correr riscos em nome duma estranha forma de sorte? Não e não mesmo. Mas faço parte da crescente minoria que prefere manter as mesmas precauções, apesar de duas vacinas tomadas. Porque, muito provavelmente, poderemos ter de tomar uma terceira dose, a fazer fé nas contas da ciência a serviço dos cidadãos e das economias mundiais.
E quando ouço que centenas de pessoas foram infetadas nos estádios, tenho a certeza do que não quero. A UEFA? A UEFA... nada. Deixou claro que não iria exigir que se diminuísse o número de adeptos em Londres. A mesma UEFA que, diante duma lei húngara contra a comunidade lgbtqia+, sentou-se no murinho (com Portugal) e disse não querer "passar nenhuma mensagem política", ao não permitir que se iluminasse um estádio com as cores da diversidade sexual. Mesmo com os adeptos a empunharem bandeiras arco-íris, fizeram ouvidos de mercador! A mesma UEFA que promove campanhas a favor da pluralidade, contra o preconceito e discriminação racial, no caso assobiou para o lado. Ou seja, 60 mil pessoas com a festa estragada em Wembley, valem mais à economia europeia, que um "bando" de húngaros a gritarem por uma liberdade que lhes é devida. Claro!
Enquanto isso, em tempos duma pandemia que, supostamente, nos iria tornar mais próximos e mais humanos, já assistimos de tudo: um presidente francês a levar um estalo dum cidadão com o mundo inteiro a assistir... outro presidente, no Brasil, a agredir verbalmente uma jornalista e a destilar palavrões contra uma estação de televisão... a família real inglesa virada do avesso sob acusações de racismo e falta de empatia... uma jornalista portuguesa insultada na rua, quando fazia o seu trabalho, por ser negra... manifestações em Cuba contra o regime... tumultos violentos na África do Sul por causa dum ex-presidente a contas com a justiça... a prisão dum rapper ativista em Espanha por criticar a família real espanhola ou a eliminação consecutiva das maiores potências do futebol, durante o Euro.
Se quiserem, também a primeira vitória de Lionel Messi com a Seleção Argentina, festejada efusivamente pelo próprio, quando foi Dí Maria a marcar o golo decisivo. Tudo isso faz parte da nossa memória coletiva da pandemia e não necessariamente pelos melhores motivos. Mas para que nunca nos esqueçamos que entre a retórica da união, da maturidade e da mudança e a realidade, vai um caminho que pode ser a diferença entre estarmos otimistas em 2021, mas sempre a pensar: "será que isto vai mesmo acabar um dia"?