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Pedro Chagas Freitas
Pedro Chagas Freitas COMO F***DER UM CASAMENTO Manual Prático para Mul

Notícia

Ódio

Ódio: s.m. Aquilo que sentem os que nada sentem; nunca alguém apaixonado odiou alguém.
04 de dezembro de 2017 às 07:00
casal apaixonado
casal apaixonado

Sou uma velha, meu filho, desculpa, as mãos tremem,

ontem virei a água quente da sopa em cima dos pés, não te disse nada, quero lá eu que me vejas assim, mais velha do que nunca,

estamos sempre mais velhos do que nunca, a vida é uma corrida em direção à velhice,

o máximo que podemos ser é velhos, que pobreza de sonho haveríamos de ter, já viste?,

o corpo treme todo, o tempo treme todo, na verdade, já não consigo escrever a lista das compras,

o teu pai escrevia aquilo como se fosse poesia, talvez fosse mesmo,

há mais poesia numa lista de compras de quem ama do que num poema de antologia que ninguém sentiu,

o teu pai era o poeta possível, o meu poeta, um dia disse-me que me queria mais do que à terra em ano de sorte,

conheces poesia mais linda do que esta?,

o teu pai com o lápis na mão a escrever arroz, pão, leite,

a mão dele como se a de um pianista, todos os dias, todo o dia, a trabalhar na terra e as mãos de um pianista,

somos as mãos que sentimos, nunca as que usamos,

a mão dele na minha e o fim, ficava tudo por ali, esquecia-me do que ia dizer, do que ia fazer, do que ia ser,

amar é ser o que o amor é, e outras coisas que não interessam para nada,

o silêncio, dói o silêncio sobretudo, olham-me como se estivesse morta, e é isso que mata,

ouvir é meio sustento, fica com esta frase se nada mais levares de mim,

somos em grande parte o que ouvimos,

amo-te, chiça, ajudas-me a podar hoje à tarde que eu quero-te ainda mais?,

a voz do teu pai no interior do que me perdi, que merda de coisa é a morte?,

és um mocetão tão lindo, tens a tua vida, a tua casa,

queria morrer com um neto nos braços, prometes?,

a juventude fica como um quadro, ali pendurada na parede, passamos por ela, olhamo-la, e quando a temos faz-nos felizes e quando a perdemos acaba-nos por KO,

não, não quero que fiques, vai, a tua mulher, o teu filho,

diz-lhe que quando crescer vai ser grande como o avô,

o mais grande da casa,

di-lo assim porque o teu pai dizia-o assim, conheci-o assim, a dizer o que as crianças dizem, e sem dar por ela já estávamos os dois a fazer o que as crianças fazem,

não penses que era perfeito, tu viste, não era,

discutíamos por excesso de amor, quase sempre, porque nos queríamos tão bem que o quase-bem magoava, e íamos à procura de sarar e por vezes feríamos,

humano não é não magoar, é magoar apenas quando se quer sarar,

um acidente, o que se torna eterno é o acidente,

e tu, que não foste um acidente mas estás aí, a salvar-me do acidente final,

adoro-te, mãe,

adoro-te, filho,

fecha a porta devagar,

de cada vez que se fecha sinto um dia a menos,

deito-me, a cama gelada,

com o teu pai nunca tive uma única noite de frio,

com o teu pai nunca tive uma única noite de nada, só dele, sejamos sinceros,

dormimos juntos uns vinte mil dias, fiz há dias as contas por alto, e isso contando apenas as noites,

dormimos juntos uns quarenta ou cinquenta mil dias, porque sempre que me lembrava dele me deitava com ele,

a porta fechada, o silêncio abstracto,

o silêncio é o que queremos ver nele,

quando se ama até o silêncio se ama,

a mão treme, o corpo treme,

quando voltares perdoa-me se não estiver, mesmo que esteja,

está bem?

Ódio: s.m. Aquilo que só se encontra no interior do vazio — e que por maior que seja nunca o consegue ocupar.

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