"A dor arranca-nos todas as certezas": Pedro Chagas Freitas revive o sofrimento nas palavras para o poder compreender
Depois de 'Hospital das Alfaces', escrito num momento particularmente delicado, quando o filho, Benjamim, travava a maior batalha da sua vida, Pedro Chagas Freitas está de regresso com 'A Menina Cinzenta', em que temas como a depressão e a tristeza são explicados a um público mais jovem. Nos dois, admite, há o denominador comum de quem escreve com o coração para entender as dores de alma. “Entrego-me sem máscaras. A escrita, para mim, é sempre o mesmo lugar: uma tentativa desesperada de agarrar o que escapa em mim e nos outros", disse, em conversa com a FLASH!De uma ferida aberta e da necessidade de Pedro Chagas Freitas purgar e dar nome àquilo que viveu num passado recente nasceram dois livros. O primeiro, ‘Hospital das Alfaces’, foi escrito em plena dor, enquanto o filho, Benjamim, recuperava de um transplante de fígado, após meses de internamento e incertezas, e o segundo, ‘A Menina Cinzenta’, dedicado ao público infantil, chega-nos agora, alertando para um tema pouco falado, uma vez que parece quase errado associar as palavras depressão ou tristeza a uma criança. “Vivemos numa época que exige alegria como quem exige produtividade: constante, performativa, sem falhas, só porque sim. Às crianças pedem-se sorrisos automáticos. O riso não é um dever; é uma consequência natural. A infância também tem buracos, também tem silêncios, também sabe o que é perder-se de si mesma. Ignorar isso é o primeiro gesto de violência que lhes oferecemos (...) Escrevi este livro porque há dores que não esperam pela idade adulta para doerem. Se não lhes dermos nome cedo, tornam-se monstros sem rosto”, começou por contar à ‘FLASH!’ o autor bestseller, acrescentando que o livro infantil, que aborda a temática da depressão, é importante para crianças, mas fundamental para quem os acompanha. "A empatia é o músculo que mais facilmente se atrofia. Exige pausa, exige atenção, exige disponibilidade. São três luxos que a pressa moderna nos arrancou. Este livro é um pedido: temos de olhar para o outro mesmo quando ele não sabe explicar o que sente. As crianças precisam de crescer com a possibilidade de compreenderem o que nós, muitas vezes, só na idade adulta tentamos consertar."
Este é mais um livro em que as dores de alma de Pedro Chagas Freitas são passadas para o papel. Num estilo tão vulnerável quanto tocante, que conquista cada vez mais leitores, o autor admite que esmiuçar o próprio sofrimento não é uma “bandeira”, mas uma quase que necessidade. “A dor arranca-nos todas as certezas. Deixa-nos a olhar para o chão à procura de qualquer coisa que ainda faça sentido. A minha experiência está aqui. Não é uma bandeira; é uma ferida, na melhor das possibilidades é uma cicatriz. Quando se passa pela noite mais longa, percebe-se que não há tema mais urgente do que a sobrevivência emocional.”
A DOR E A FÉ INABALÁVEL
Foi nas redes sociais que Pedro Chagas Freitas comoveu o País com as partilhas tocantes sobre o seu Benjamim que, nascido com uma doença degenerativa rara, precisava de um transplante de fígado urgente. Numa situação limite de saúde, enquanto esperava por um dador compatível, viu-se privado tantas vezes do seu mundo e do contexto expectável para a alegria de uma criança, passando três meses em contexto hospitalar. Para o escritor e para a mulher terão parecido muitos mais e levaram a que Chagas Freitas colocasse tudo em perspetiva, partilhando os seus estados de alma de uma forma muito crua e genuína. “Entrego-me sem máscaras. Escrevo como quem entrega um pedaço do peito, dos ossos (...) A escrita, para mim, é sempre o mesmo lugar: uma tentativa desesperada de agarrar o que escapa em mim e nos outros. Adultos ou crianças, tanto faz. Escrevo para a parte de cada um que ainda acredita que pode ser salva, a começar por mim. Preciso de escrever para saber quem sou.”
Hoje, à distância de mais de um ano do transplante que devolveu a doce existência ao filho, o autor tem retomado a normalidade, ainda que esta tenha um renovado sentido, no qual tenta ter sempre presentes os ensinamentos da fase mais dura. “Mudou a hierarquia das urgências. Depois de olhar o medo maior de perto, o que não é essencial torna-se ridículo. Disse que não ia voltar a perder tempo. Tento cumprir. A normalidade tem garras, tem truques, tem adormecimentos, tem vícios. Luto todos os dias para não esquecer que o tempo é um animal selvagem: se não o respeitamos, ele devora-nos.”
Desse tempo guarda as feridas, mas também a alegria de saber que o pior já passou e que o filho, Benjamim, cresce com saúde. "Ainda dói, claro. Dói de outro modo. Há nele uma espécie de nostalgia amarga. É sempre assim com tudo o que nos atravessa: primeiro fere, depois molda. Hoje o livro (Hospital das Alfaces) é uma fotografia tirada momentos depois de um terramoto: há pó, há destroços; também há o testemunho de que ficamos vivos, apaixonados uns pelos outros mais do que antes, mais do que nunca", diz, acrescentando, no entanto, que apesar de esta ser a história do seu filho é também um episódio que Benjamim tem direito a arrumar numa gaveta para seguir a sua normal vida de criança. "Está a crescer. Lindo como só ele. Está a tornar-se alguém que não controlo, isso é maravilhoso. Também é belo e assustador. O importante é que esteja bem, que seja feliz, que não carregue o peso de ser símbolo de nada. É uma criança que só quero que seja como todas as outras."