
Quando abriu a porta, tudo mudou. Ou, na verdade, terá ficado tudo na mesma mesmo que tudo se tenha alterado. O que aconteceu conta-se em poucas palavras:
Era uma vez uma mulher que acreditava que o fim do mundo era o final do amor – uma mulher, no fundo, como todas as mulheres; mais ainda: uma pessoa como todas as pessoas. Eis que um dia essa mulher encontrou um instante revelador (quem nunca teve um momento destes que atire a primeira pedra, ou que a fume, pelo menos): um pedaço de papel pousado num banco de jardim, rasgado de um dos lados. O que dava a ler era só isto:
Ao meio dia.
Hotel 203.
Quarto 112.
É certo que esta mulher tinha emprego, é certo que teria de entrar ao trabalho em menos de dez minutos, mas também é verdade que a curiosidade é algo muito forte no interior de um humano – há até quem diga que a curiosidade vale mais do que a inteligência, vejam lá. E assim seria: a curiosidade ganhou a batalha e esta mulher resolveu (foi obrigada pela curiosidade) fazer gazeta ao que teria de fazer e dedicou o tempo que tinha pela frente à procura desenfreada pelo hotel e pelo quarto. Não se sabe para quê, nunca se soube para quê – nem ela própria, provavelmente, saberia porquê. Mas foi: percorreu os hotéis da cidade em todos os mapas, em todos os motores de busca. Mas nada: nenhum tinha aquele nome. O que seria, afinal, aquilo?
Desistiu, como todos desistem, quando o corpo mandou: quando as forças desistiram. Passamos a vida a falar de alma mas é quase sempre o corpo a decidir o que somos, que parvoíce. Regressou a casa, autocarro cheio, suores, cheiros, confusões, vidas perdidas no meio de vidas perdidas.
- O quê?
Ao abrir, por acaso, a página digital de um jornal qualquer, encontrou a notícia que lhe fez a pernas tremerem: e aqui está de novo o corpo a decidir tudo: tremem as pernas e tudo treme no meio de nós.
- Não pode ser, não pode ser! Não pode ser!
Disse-o três vezes por fora, muitas mais por dentro. Mas podia ser. Era mesmo: a sua empresa, o edifício da sua empresa, para sermos mais concretos, tinha acabado de explodir.
- Não, não! Não!
Que mania, esta, a dos humanos: precisamos de repetir alto o que nos custa a assimilar; precisamos de ouvir o que não queremos pensar, viva a incoerência.
- E agora?
Desta vez disse-o apenas uma vez, toda a gente, naquele autocarro, a olhá-la como se olhassem um fantasma; bem podia sê-lo – um fantasma – não fosse a curiosidade, não fosse aquele papel no banco de jardim. Há letras que nos salvam a vida, sempre ouvira dizer.
Acordou, bem cedo, obrigada pelo som da campainha. Uma encomenda.
- O que será?
Bate, coração; bate, coração: sim, era outra vez o corpo a mandar no resto – se ainda havia dúvidas sobre quem dita leis aqui ficam elas dissipadas. Embrulha lá esta, ó céptico.
É hora de fechar a narrativa: temos mais que fazer e o leitor também, certamente. Cá vai aço, então: um livro. É isso o que se encontra ali. O título: Hotel 203 – um thriller clássico, carregado de suspense. Algures lá pelo meio, uma dedicatória.
A curiosidade matou o gato mas salvou a mulher.
Eram apenas estas as palavras do texto, escrito à mão, colocado no capítulo quarto, mais propriamente na página 112.
Um terrorista apaixonado é a coisa mais fofinha do mundo, não é?
Quando abriu a porta, tudo mudou.
Nadar: v. movimento que, embora extremamente técnico, não deixa de ser extremamente instintivo; o mesmo que amar.