
Quantos continuariam a ser honestos se não existissem prisões?
A honestidade é, por mais que tenhamos a mania de que assim não é, uma questão de aparência. É o lado bom – o lado belo, se quisermos continuar no meio da estética da vida – das aparências: quantos não fizeram o mal porque isso lhes ficava mal? Agimos em nome do que parecemos, também – e não há mal nenhum nisso. O belo comprime-nos, mas igualmente nos conduz. Tememos o fim da vida porque raramente vemos beleza no velho. Amamos o início porque é prenúncio de tanta coisa bonita: o beijo, o abraço, as descobertas.
Somos dependentes que começos, sejamos honestos. E o que vêem em nós faz-nos ser, muitas vezes, o que não somos, ainda que, se o sintoma persistir, acabemos por o ser mesmo. Somos todos, na realidade, personagens fictícias, marionetas de desejos – próprios ou alheios. Somos actores vendidos, autores frustrados, autómatos incuráveis da vontade.
Livre é aquele que, amiúde, consegue fugir às suas vontades.
É claro que é bom saciar: oh, se é. É claro que há orgasmos que nos salvam a vida, ou que pelo menos nos adiam enquanto finais. Mas é necessário, com regularidade, ser livre para recusar a liberdade que mata: uma liberdade assistida. Qualquer um justifica o erro com a liberdade, pensando estar a salvar-se de uma prisão anunciada; mas é quem não resiste à liberdade escura o menos livre. O que prende é o vício – por mais que, nele, nos sintamos livres. Um pássaro que voa antes de aprender a voar não é um pássaro livre; é um pássaro morto.
Somos aquilo de que gostamos; mas somos, ainda mais, aquilo que tememos.
És o que te faz tremer. É isso o que te distingue do outro, do que está ao teu lado. Olha-o com atenção. Isso: olha-o bem. Agora pensa: o que teme ele? É quando o descobrires que o saberás verdadeiramente. O segredo é o que nos separa do rebanho, o que fica no subtexto da aparência. Mostra-se quase sempre o que é suportável, mas excepcionalmente o que nos suporta. Há quem tenha vivido uma vida inteira com um desconhecido do qual tanto se sabia. Sabemos muito do que são os gostos de quem amamos, muito pouco sobre o que são os seus desgostos, e quase nada sobre o que são os seus medos. É essa uma das nossas fragilidades:
ficamos a meio do que nos pode assustar. Podíamos, sem dúvida, saber muito mais, conhecer muito mais; mas, é claro, temos medo. Somos acima de tudo aquilo que temos medo de saber que somos. Somos acima de tudo aquilo que temos medo de ser.
O idiota, quando lhe pedem para mostrar quem é, abre a carteira; o sábio abre a cabeça.
A sabedoria é o entendimento dos estratos que nos dividem; o sábio percebe, o idiota deforma – talvez seja esse o motivo para ser, na grande maioria dos casos, mais capaz de encontrar uma felicidade sustentável. A felicidade é, então, provavelmente, uma deformação inconsciente da realidade: uma espécie de inteligência cega, ou até burra. A lucidez dá trabalho e tem pouco de alegre. Só o oco encontra espaço para receber a merda toda com que temos de conviver, a merda que temos de assimilar. É essa a diferença entre um génio e um sábio: aquilo que faz com aquilo que sabe. O sábio vê a realidade e é pisado por ela; o
génio vê a realidade e transforma-a. É daí que nasce a arte – e, claro, o amor. Sim: só o amor é genial. Até um idiota sabe isso.
Honesto: adj. O mesmo que chato; a vida está pejada de doses industriais de bosta, é certo; mas será que precisamos mesmo de a ver sempre? A sinceridade salva e mata nas mesmas doses. Agora pensa: queres mesmo consumi-la (e ser consumido por ela)?