Nuno Lopes: "Vi pessoas que nem água tinham"
O ator protagoniza 'S. Jorge', um filme duro sobre a pobreza. Nos bairros onde filmou viu pessoas que trabalham para ter comida ao final do dia e até quem não tivesse água em casa.
Nuno Lopes tinha o sonho, desde miúdo, de fazer o papel de um pugilista. "Sempre me fascinou este mundo de pessoas pobres, que lutam, literalmente, pela vida. Porque em Portugal não se enriquece com o boxe, como acontece em Las Vegas", explica o ator ao site FLASH!.
Em conversa com Marco Martins, realizador e amigo, acabaram por começar a pensar numa forma de abordar essa personagem.
Foram 5 anos de trabalho, entre a ideia, a pesquisa, a escrita do guião, as filmagens e, finalmente, a estreia de 'S. Jorge'.
O contacto com o mundo do boxe, em Portugal, fez ator e realizador perceberem que havia um universo social complexo por detrás deste desporto de luta. Muitos pugilistas acabam por se dedicar, por exemplo, às cobranças difíceis.
Nuno Lopes não queria ter um duplo. Começou a treinar com Paulo Seco, num ringue na zona do Casal Ventoso, em Lisboa. "Não queríamos fazer mais um filme de combates. Queríamos que se percebesse a dureza de estar dentro de um ringue e acho que essa violência nota-se, no filme", explica o ator que dá vida a Jorge, o protagonista.
UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA
A grave crise que se abateu sobre o país acabou por servir de pano de fundo a 'S. Jorge'. "Estávamos nesta pesquisa quando, de repente, a crise nos entra pelo filme adentro", explica Nuno Lopes. E o guião foi sendo alterado, à medida dos acontecimentos.
Marco Martins só tinha uma ideia inicial: o cenário teria de ser um bairro social, onde vivem os mais pobres dos pobres.
Foi nestes bairros que a crise e a entrada da troika em Portugal foi ainda mais feroz. "Não me esqueço de irmos a atravessar a ponte e a ouvir no rádio as notícias sobre a classe média que estava a ser esmagada. Só que, no caso daquelas pessoas, era uma questão de sobrevivência. Vi pessoas que nem água tinham", conta Nuno Lopes.
A marginalidade é um facto, nestes bairros. Mas o ator tem uma explicação para isso. "As pessoas são discriminadas, à partida, por serem dos bairros. Não têm condições financeiras. Trabalham para ter o que comer ao final do dia".
Jorge, o protagonista, é um desses homens, que vivem à margem da lei.
Desempregado, vive com o pai, num bairro social. Tem um filho de mãe brasileira e negra. O pai é racista. A separação acontece porque Susana não aguenta mais o racismo do sogro, interpretado por José Raposo.
De um simples filme sobre o boxe passou-se para uma obra que retrata uma realidade concreta. Jorge é um pugilista que, impulsionado pelo pai se envolve nos negócios ilegais das cobranças difíceis.
HOMEM FRÁGIL COM CORPO "MONSTRUOSO"
Ter treinado boxe também fez parte da composição da personagem. "Queria criar aquele corpo. Acho fundamental aquele aspeto exterior de um homem quase monstruoso, que parece muito forte, confiante, mas no seu interior tem imensas fragilidades".
O filme acaba por se revistir de grande realismo, contanto também com a presença de atores não profissionais. Um deles é David Semedo, uma criança do Bairro da Bela Vista, Setúbal, que interpreta Nelson, o filho de Jorge.
Em 'S. Jorge' estão também os trabalhadores dos estaleiros navais de Viana do Castelo, que já tinham trabalhado com Marco Martins e Nuno Lopes.
Nuno Lopes acabou por ser distinguido com o prémio de Melhor Ator, na secção 'Orizzonti' do Festival de Veneza. "Só recebi este prémio por ter feito este papel. E o mais importante deste prémio é fazer com que esta realidade não seja esquecida".
O ator também não esquece a crueza desta realidade. "Não se faz uma limpeza do cérebro depois deste trabalho. Muito pelo contrário: pensa-se nisso. Como dizia Oscar Wilde, o descontentamento é o primeiro passo para a evolução", afirma Nuno Lopes que se bate por melhores condições de vida para todos.