
Não é assim tão rara a existência de progenitores que matam os filhos. Numa estatística grosseira, poderemos dizer que todos os anos há um caso destes. Ou mães que matam ou pais que matam as suas crias. É um acontecimento trágico que perturba a comunidade. Por um simples razão: Acreditamos que o amor pelos filhos tem uma dimensão transcendente. Não há possibilidade de o comparar com outras manifestações de afecto. É amor pelo qual se morre.
Por isto, o clamor em volta dos crimes ocorridos no concelho do Seixal, com a degola de uma sogra e a asfixia da própria filha, não seja apenas um acto de rebelião e indignação apenas por estes dois assassinatos. Vai mais longe. É que culminam um mês trágico no que respeita à violência doméstica. Nada mais, nada menos que dez mulheres, sendo uma ainda criança, foram barbaramente assassinadas no arranque do ano. Mais de um terço de todas as vítimas que morreram em 2018. É aqui que reside o verdadeiro choque com que se discute o caso mais recente e que terminou com o suicídio do homicida.
Depois de tantas mulheres brutalmente assassinadas, na última década, depois de tantas crianças órfãs, depois de tantas campanhas contra a violência doméstica, depois de tantos alertas e de tantas indignações, de repente, percebemos que nada valeu a pena. A cultura do homem-macho, do homem-proprietário, do homem-misógino, do homem-dono do seu destino e de quem com ele habita continua a ser determinante, evidência maior da cultura portuguesa. Mudámos discursos. Não mudámos atitudes, nem comportamentos. A igualdade de género é discussão de élites e de minorias. A raiz judaico-cristão é, continua a ser, o pináculo ancestral, e actual, de uma moral que remete a mulher para a qualidade de coisa, obrigatoriamente com dono. Como respondemos às almas das centenas de vítimas nos interpelam pela aceitação deste atavismo, pela legitimação desta barbárie? Julgo que não há inocentes. Todos nós estamos sentados nesse banco dos réus por cumplicidade na consumação de tantas mortes. Porque não quisemos saber, porque não educámos para a igualdade, porque nos foi indiferente a cultura judicial do ‘deixa andar’, porque apoiámos a cultura política que se indigna muito mas não passa das palavras aos actos, porque não despertámos para a exigência de uma educação para a cidadania activa.
Quero crer que esta mortandade que inaugura 2019 seja o toque de alerta. Quero crer.