
Quem olha com distância crítica os dramáticos acontecimentos que estão a colocar a França a ferro e fogo, terá de reconhecer que a ordem imposta pelo Estado não tem eco decisivo nos comportamentos humanos. Vivêssemos nesse mundo de fantasia, onde a norma comanda a vida, está tudo certo e perfeito. Um polícia, em operação de controlo, dispara sobre um carro e mata o seu condutor. Um jovem de 17 anos. Em reação a este facto criminoso, a Justiça francesa abre um inquérito e prende preventivamente o alegado matador. E pronto! É assim que funciona o Estado de direito. Agora, o processo é devidamente instruído e irá para julgamento.
Aquilo que acabo de escrever, vale para este caso e para todos os casos de homicídio. É esta a regra ditada pela lei. É este o mecanismo de expropriação da violência aos indivíduos, e da qual o Estado tem o monopólio através dos tribunais.
Se as instituições funcionaram regularmente, sem distorções, o que explica a brutal violência que se instalou nas ruas das principais cidades francesas, tendo como alvo principal a Polícia e a comunidade em geral?
Respondo com um filme de 1995, realizado por Mathieu Kassovitz, com o título 'La Haine' ('O Ódio'), e que convido os nossos leitores a revisitar. Conta a história de três jovens que, na ressaca de um acontecimento semelhante, pôs os bairros periféricos de Paris a ferro e fogo. Ganhou vários prémios de cinema e é filmado a preto e branco, o que leva à sobrecomposição dramática da ação.
São, quer no filme, quer agora, rebeliões sem enquadramento ideológico, ditadas pela raiva, objetivando na Polícia (aceite como inimigo principal) as explosões de fúria contra a ordem, a emergência do caos, queimando e destruindo bens particulares de gente estranha aos casos, incapazes de afrontar os problemas através da ação política, já que os protestos, indiretamente, só podem ser resolvidos pela política. O traço comum é essa incapacidade de investir o protesto e o clamor contra o governo (ou os governos) que frustraram sonhos, esmagaram expectativas e destruíram a esperança. Lá como cá, a Polícia não passa do anteparo que aguenta a revolta, embora não tenha instrumentos para a resolver, enquanto a política se esconde em discursos vazios que nada resolvem. Apenas conseguem alimentar ainda mais o ódio.