
A coisa ter-se-á passado em Requião. Chamam-lhe a Fraternidade Missionária Cristã. Era controlada por um padre e, em clausura, viviam várias mulheres que usavam vestes de freira. Soube-se, muitos anos depois, que não eram freiras a sério. Nunca teriam realizado as práticas iniciáticas que lhes dariam esse estatuto. E viviam em reclusão.
Com práticas ascetas, sublinhando o sofrimento como penitência e o caminho para encontrar Deus, muito na tradição medieval de que o corpo, por via do martírio, se libertaria dos pecados capitais, conseguindo ceder a alma purificada à paz celestial. Algumas dessas mulheres insurgiram-se. Os maus-tratos, a brutalidade do trabalho, o castigo repetido, a clausura forçada iam para além do amor a Deus. Uma delas suicidou-se. Outras apresentaram queixa e, finalmente, as líderes desta mini seita e o respetivo padre estão à espera de redenção do crime de escravidão. Na verdade, o hábito não faz o monge.
Porém, em nome de uma fé cega e sem vigilância crítica, é possível encontrar resquícios do Portugal antigo, medieval, sujeito à crença, dominado pela crueldade de um sacerdote. Foi assim há muito tempo. É assim hoje.
Esqueçamos as putativas freiras. Voltemos ao princípio. Continua o massacre de mulheres vítimas de violência doméstica. Quando escrevo, o último caso foi perto de Amarante. Um ex-companheiro, anos depois da separação, decidiu matar a mulher e o atual namorado. E matou-os brutalmente. Procedeu como todos os restantes. Pese a separação, aquela mulher, com quem vivera, julgava o assassino que era dele até que a morte os separasse. Era dele, como propriedade, entenda-se. Um título de propriedade. Uma coisa da qual ele poderia dispor até ao fim dos seus dias. Uma coisa sem direitos. Que os perdera todos no dia em que aceitou casar com ele.
Se o amor pode desvanecer-se, se não for alimentado, a propriedade é coisa imperecível durante séculos, incluindo um dote material, pertença daquele homem que, assim, possui maior fortuna. Enfiando no mesmo saco a Fraternidade Missionária e os assassinos de mulheres, compreendemos melhor que somos tudo ao mesmo tempo. Que este Portugal tem tanto de moderno como de medieval, provocando as mesmas vítimas e incapaz de compreender a luz dos direitos de cidadania e da Liberdade.