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Francisco Moita Flores
Francisco Moita Flores Piquete de Polícia

Notícia

A indiferença

O caso só foi notícia porque se tratou de um célebre fotógrafo. René Robert morreu, na rua, abandonado, ao frio, com hipotermia. Há muitos anos visitei Bombaim. Em trabalho. Uma das maiores metrópoles do mundo. Pela madrugada, vasculhando entre as multidões de famintos a dormir das ruas, passavam os funcionários com uma camioneta. Era a sua função diária: recolher aqueles que tinham morrido durante a noite.
06 de fevereiro de 2022 às 07:00
Paris
Paris Foto: Getty Images

caso só foi notícia porque se tratou de um célebre fotógrafo. René Robert morreu, na rua, abandonado, ao frio, com hipotermia. Algumas testemunhas alegaram não ter dado importância ao homem prostrado numa das ruas de Paris porque julgaram tratar-se de um sem-abrigo. Foi paradoxal saber que foi um sem-abrigo, que incorporava em si próprio a humanidade perdia, quem deu alerta para a gravidade da situação. Foi tardio o grito de alerta. René Robert sucumbiu a caminho do hospital.

Há muitos anos visitei Bombaim. Em trabalho. Uma das maiores metrópoles do mundo. Pela madrugada, vasculhando entre as multidões de famintos a dormir das ruas, passavam os funcionários com uma camioneta. Era a sua função diária: recolher aqueles que tinham morrido durante a noite. Aquela camioneta, tanto tempo depois, ainda me inquieta. Tratava da recolha daqueles que a Vida desprezara e que a morte acolhera com a indiferença de trabalhadores de recolha de lixo.

Conheci coias semelhantes em várias metrópoles. Lisboa e Porto não são virgens no que respeita a esta indiferença desumana, ela própria característica do viver metropolitano.

Não se passará uma semana sem que, nas morgues, entrem cadáveres recolhidos na rua ou na solidão das suas casas. Poucos dão por elas terem vivido. São raros aqueles que os encontram na morte.

As grandes metrópoles têm este papel desagregador dos afetos. Dissolvem as relações de interconhecimento. Quebram as solidariedades verticais e horizontais. O cimento que constrói o sentimento de vizinhança dilui-se, cada prédio é capas de ser habitado por trinta ou quarenta  famílias onde todos se desconhecem ou passam anos a trocar um simples aceno de cumprimento. Perde-se o sentido e a significação dos nomes. As palavras ganham novos sentidos. A massificação dos ‘amigos’ propostos pelas redes sociais são a negação da substância da amizade e o amor é uma efemeridade. Não se estranhe a indiferença perante a morte. Ela é apenas um reflexo da Vida.

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