
Os repórteres passam devagar pelas ruas de Bucha, recentemente libertadas pelo exército ucraniano. Os planos recolhidos revelam a exposição crua, e cruel, dos mortos, assassinados pelo exército de Putin. Cadáveres estropiados, alguns deles ainda muito jovens, disformes, vários com as mãos atadas atrás das costas. Foram pura e simplesmente executados. Não se veem fardas. Todos aqueles que as câmaras vão devorando são civis, abandonados e indefesos. Um deles, percebe-se que ia na sua bicicleta quando foi assassinado. A contextualizar o espetáculo macabro, surgem os edifícios despedaçados pelos bombardeamentos, carros de combates desfeitos durante a refrega, caixas e mobílias abandonadas, dando o sentido de sujidade àquele palco de horror e morte. Num outro plano, surgem militares ucranianos puxando os cadáveres com cabos de aço. Temem que os invasores tenham deixado minas nos corpos das vítimas.
Por estar distraído, vi esta sequência de horror. Isso mesmo, distraído, pois quero guardar, por higiene espiritual, a ideia de que a morte é o momento do silêncio e da respeitabilidade. Mudei de canal com Picasso a visitar-me através da sua obra Guernica. Uma das peças de arte mais poderosas para denunciar a guerra, o medo e a morte gratuita. Guernica não foi uma ficção. Tal como Bucha não é. Foram o colo dos mártires, dos indefesos, dos simples, supliciados pelo poder dos ditadores. Franco e Putin conseguiram pintar as suas obras hediondas. Guernica foi imortalizada por Picasso, estampando na cara do prócere a brutal violência que lhe ficaria como testamento. Nenhum livro, nenhum filme, revela a brutalidade fascista com a crueldade desnudada que Picasso pincelou. Visitado por dezenas de milhares, anualmente, Guernica é o testemunho mais vivo dos tempos do assassinato ímpio que Espanha sofreu, durante a guerra civil.
Picasso já não está entre nós. Infelizmente. Bucha precisava do seu talento para pintar a suástica do ódio feliz e gratuito que o exército de Putin derramou sobre a pobre população da cidade ucraniana. Neste tempo, em que tudo se desvanece na frivolidade impessoal de uma câmara de reportagem, era urgente surgir, quem fixassem para sempre o horror e a obscenidade. Os mártires de Bucha merecem o seu Picasso.